Cem mil vítimas fatais em dois anos e meio da guerra civil iniciada pela primavera árabe que irrompeu em março de 2011 e agora o assassinato de comunidades inteiras com gás venenoso em Almuadamiya, Ain Tarma, Zam Laka, localidades ao redor de Damasco dominadas pela oposição ao governo de Bashar al-Assad. O que mais é necessário para que o mundo dito civilizado acorde, entenda que isso tudo é inaceitável e ponha um fim ao massacre?

A ONU, cuja finalidade é, pelo menos, de evitar que seus membros nacionais cometam barbarismos, a tudo assiste imobilizada pelo regime de três contra dois em seu arcaico e ineficaz Conselho de Segurança (neste caso a ausência de ação se deve ao bloqueio de Rússia e China). A Síria tem 22 milhões de habitantes num território equivalente ao do estado do Paraná. Destes, 4,2 milhões foram deslocados de seus lares e 2 milhões – metade são crianças – estão refugiados em países vizinhos, com 85% na Turquia, Líbano e Jordânia. Seis mil carros cruzaram a fronteira rumo a Beirute na 4ª. feira da semana passada quando o ataque norte-americano com mísseis Tomahawk parecia iminente, um movimento quase nove vezes superior ao dos dias anteriores.   

Sobreviventes ao ataque químico de 21 de agosto informaram ter sido atingidos por foguetes que emitiam uma espécie de assobio, bem diferente daqueles que regularmente os bombardeavam. Especialistas explicaram que isso se devia à liberação do gás Sarin antes mesmo do choque contra algum obstáculo, num sistema tipo aerosol, dessa maneira afetando a mais gente. A Organização para a Proibição das Armas Químicas, à qual pertencem 189 países com exceção de Angola, Egito, Coréia do Norte, Sudão do Sul e Síria, define-as como produtos químicos tóxicos contidos num projétil ou bomba atuando como agentes que provocam choques, lesões à pele, hemorragias e/ou lesões nervosas. O gás Sarin, que está nesta última categoria, é um composto produzido pelo homem similar a pesticidas organofosforados embora muito mais potente, usado anteriormente por Sadam Hussein contra populações curdas e pela seita Aum Shinriko em ataque no metrô de Tóquio. Antes, no verão de 1919, os ingleses por ordens de Winston Churchill (era ministro da Guerra e do Ar) usaram gás asfixiante em grupos bolcheviques russos. Sua aspiração leva a espasmos, suor abundante e por último a insuficiência respiratória e morte. Embora persistam dúvidas se no caso atual o ataque foi perpetrado pelo governo ou pela oposição, o fato é que esta nunca antes deu sinais de ter armas químicas, ao contrário das forças de al-Assad, tidas como sendo as responsáveis pela Liga Árabe.

Barack Obama que é Prêmio Nobel da Paz e não é George Bush, ainda que não queira repetir os erros da ofensiva no Iraque, dificilmente será impedido de lançar o que chama de ações discretas e limitadas na Síria. Contudo, o tabuleiro de xadrez mostra posições complexas, considerando que: a) mísseis são pouco seletivos e podem aumentar insuportavelmente o número de vítimas, com o risco adicional de, ao efetivamente bombardearem depósitos sírios de armas químicas, contaminarem o ambiente afetando populações inteiras. b) quem lançar o ataque comprometer-se-á com seus resultados e provavelmente não poderá retirar-se em seguida (como dá a entender Obama); c) para de fato destruir armas químicas haveria necessidade de ocupação do país por forças terrestres – até aqui não previstas – que teriam de ser constituídas por aliados vizinhos como Arábia Saudita, Qatar e Turquia ou pelas atuais forças de oposição; d) a reação da Rússia precisará ser contida, sabendo-se que Putin, para não permitir a repetição do ocorrido com Kadhafi na Líbia, poderia fornecer armas de última geração a seus aliados; e) o Irã promete uma chuva de mil mísseis sobre Israel e al-Assad ameaça bombardear alguns vizinhos (o país tem fronteiras com Líbano, Israel, Jordânia, Iraque e Turquia); f) a oposição é um saco de gatos sem confiabilidade ideológica e militar com centenas ou até milhares de grupelhos. A Coalisão Nacional Síria, o núcleo principal, inclui contingentes da Irmandade Muçulmana e tem escasso apoio popular. Radicais islâmicos são os exércitos mais bem organizados e financiados, destacando-se o Ahmat al-Nusra ligado à Al Qaeda que no momento lidera a luta armada contra o regime; g) as divisões confessionais são agudas na sociedade síria, com a minoria alauíta de um lado no governo, apoiada pelos xiitas do Irã e do Hezbolah, e a maioria sunita de outro lado com suporte de 21 dos 22 componentes da Liga Árabe (Líbano se opôs) e da Turquia.

A paz e a autonomia têm sido uma eventualidade na longa vida do povo sírio. Os franceses, hoje na linha de frente ao lado dos americanos, já em 1860 com Napoleão III lideravam expedição internacional invasora para proteger guerreiros maronitas e não por acaso o hino oficial do 2º Império era Partant pour la Syrie, uma marcha composta pela mãe do imperador para homenagear seu padrasto, o grande Bonaparte. Em 1918 a queda de Damasco frente às forças aliadas determinou a mudança do governo em Constantinopla e logo o fim do império otomano. Em seguida ao 11 de setembro de 2001 o Secretário da Defesa dos EUA enviou memorando ao general Wesley Clark, secretário da OTAN, revelando planos para atacar e destruir governos em 7 países em 5 anos, começando com Iraque e seguindo com Síria, Líbano, Líbia, Somália, Sudão e Irã (este o grande alvo). Agora cabe à ONU reinventar-se e entrar na Síria para anular a ditadura Assad, encerrar o estado de emergência que vigora há cinqüenta anos e conduzir o processo de mudança.    

Vitor Gomes Pinto
Escritor. Analista internacional