O sonho da casa própria e do carro zero na garagem parece não ter um futuro promissor. Em São Paulo, moradores de bairros chegam a passar cinco horas no trânsito para ir e vir do trabalho. Em conseqüência, cada vez em maior número estão decidindo alugar uma quitinete ou uma cama num cortiço qualquer perto do serviço, só retornando para casa nos finais de semana. Um terço da população desloca-se a pé. A paisagem comum nos centros das médias e grandes cidades pelo mundo é de esbaforidos motoristas procurando estacionamento, rodando sem parar e com isso aumentando os engarrafamentos. O Brasil estaria se aproximando rapidamente do chamado modelo asiático de mobilidade, ou seja, da realidade urbana de cidades como Hanói, Jacarta, Mumbai, Katmandu, Daca (ou mesmo nas modernas Pequim, Tóquio, Bangkok, Manila), onde incríveis miríades de veículos de duas, três ou quatro rodas misturam-se a transeuntes com ou sem animais numa dura disputa por espaços em cruzamentos que desafiam qualquer lógica a não ser a dos residentes.
Não tanto quanto no Vietnã ou na Bolívia (onde servem até para carregar as mantas de coca montanhas afora), as motos transformaram-se num fator crucial de agravamento das condições de tráfego urbano no Brasil, sendo responsáveis por ¼ das mortes no trânsito. Em excelente texto (“Mobilidade sobre duas rodas” – revista Desafios e Desenvolvimento de agosto/2009), Carlos Henrique de Carvalho do IPEA diz que a venda de motocicletas cresceu 19% ao ano na última década, enquanto os automóveis tiveram um salto de 9%, o PIB 4% e os ônibus perderam bilhões de passageiros. Para agravar a situação, o governo tomou duas medidas trágicas: reduziu o IPI e em julho regulamentou a Lei 12009 permitindo o serviço de mototaxis que deverá aumentar as mortes no trânsito ao acrescentar uma segunda vítima aos acidentes. Com 56 milhões de veículos rodando (há dez anos era a metade), o país sofre com o maior consumo de combustível, queda na produção pelo tempo gasto no trânsito, doenças resultantes da emissão de CO2, do ruído e do estresse.
Há dois modelos de solução sendo experimentados. O primeiro segue a lógica da taxação crescente sobre os automóveis. O exemplo global é a cidade-nação de Cingapura (acesso só por barco ou avião), onde os carros, sujeitos a autorizações de compra vendidas em leilões e a impostos escorchantes, ao rodar devem obedecer a limites de lotação nas estradas eletronicamente computados no chip embutido de fábrica no chassis do veículo. Lá e em Londres há pedágio para acessar o centro ou áreas críticas. Em Nova York na ilha de Manhattan já dois quartos dos moradores não possuem carro e em Munique novos edifícios comerciais não obtém habite-se se tiverem garagem. Os administradores brasileiros estão, com raras exceções (o exemplo positivo é sempre Curitiba), encantados com esta lógica, satisfeitos com o crescimento exponencial da arrecadação e cegos aos seus prejuízos. Brasília, a capital planejada por Lúcio Costa e Otto Niemeyer, em maio de 2008 tornou-se a terceira cidade brasileira a ter uma frota de um milhão de carros. O Detran e a PM orgulham-se de ter fechado o ano aplicando 1.527.239 multas que renderam R$ 88 milhões aos cofres públicos. Ou seja, uma multa a cada 20 segundos, quase todas por infrações leves aplicadas a motoristas descuidados que cruzam os “pardais” um pouco acima dos limites convencionais, em nada afetando as estatísticas acidentárias.
O outro modelo é o adotado por um grupo de cidades européias que, após chegar à conclusão de que as regras até aqui usadas não funcionam, advoga a abolição total dos regulamentos e sinais de trânsito incluindo semáforos e marcações no piso, a fim de criar espaços divididos comumente por todos. O prefeito Klaus Goedejohann de Bohmte na região alemã da Baixa Saxônia declarou: “estamos nos livrando das divisões entre carros e pedestres”, a exemplo de Ejby na Dinamarca, Ipswich na Inglaterra, Ostende na Bélgica, Drachten e outras cidades holandesas e agora uma área no bairro de Kensington em Londres. No lugar dos semáforos surgem rotatórias. Os resultados têm sido surpreendentes, com menos acidentes (quando ocorrem são leves pela redução da velocidade, pois os carros respeitam ou receiam acelerar em locais populosos) e grande economia para a população e para os motoristas.
Uma lista do que não vem dando certo pelo mundo inclui: impostos mais caros, adensamento dos centros das cidades, mais regras de trânsito, cursinhos alongados para motoristas, estacionamentos em maior número e mais caros, controles eletrônicos, facilidades tributárias para compra de carros e motos, restrição de acesso a áreas da cidade, duplicação de ruas, instalação de lombadas eletrônicas e pardais. As chances de sucesso favorecem boas políticas de urbanização e de segurança pública, transporte sobre trilhos, prioridade ao transporte público de preferência rápido e integrado, estímulos para caminhar e pedalar, adoção de rotatórias e de ruas estreitas e, se na Europa der certo, redução de impostos, regras e sinais públicos de trânsito.
Vitor Gomes Pinto
Escritor. Analista internacional