O general canadense Charles Bouchard depois de suas experiências no Iraque descansava um pouco no Quartel General da OTAN em Nápoles quando lhe deram uma nova tarefa: comandar as tropas inglesas, norte-americanas e francesas na Líbia e derrubar Muammar al-Kadafi. Agora que a missão está praticamente cumprida, antes de voltar para casa terá de sentar à mesa com os vários líderes revolucionários (o título não é aplicável, pois a revolta líbia foi toda conduzida de fora para dentro) para estabelecer uma administração minimamente confiável de ora em diante. Na última vez em que escrevi sobre este tema, em março, frisei que antes de pensar em alguma solução democrática havia que evitar a divisão do país em dois – leste e oeste com os campos de petróleo no meio – ou três se Trípoli fizer questão de tornar-se independente. Vale lembrar que a Líbia é maior que Rondônia, três vezes a França, e que o deserto (o Grande Mar de Areia) cobre 60% do território. 
Nenhum líder consegue, no quadro atual, ser aceito pelas várias etnias. Conseguiu-se uma frágil união em torno do objetivo maior de livrar-se do ditador que há 42 anos governa com base em sua tribo, os Guedadfa. A ONU patrocinou a criação, desde março na cidade rebelde de Benghazi, do Conselho de Transição Nacional (NTC na sigla inglesa) que tem na direção executiva a Mustafa Abdul Jalil que é hoje o principal líder oposicionista e na presidência do comitê de 33 membros a Mahmoud Jibril. O NTC se declara como o único representante do povo líbio, mas até mesmo o comitê dirigente é composto por uma ampla gama de tendências: nacionalistas árabes, muçulmanos, secularistas, socialistas e até homens de negócio. No entanto, é impensável que Trípoli seja dirigida por gente de Benghazi. À frente da brigada que tomou a capital, o líder Husam Najjair diz que todas as tribos tentarão controlar Trípoli, mas para evitar um banho de sangue a primeira ação de seu grupo será e estabelecimento de pontos de controle nas entradas e saídas da cidade, desarmando todo mundo, inclusive os pertencentes às outras facções anti-Kadafi, algo que certamente não conseguirá fazer.
 Em geral, os mais proeminentes homens da oposição são desertores do círculo mais íntimo que até há pouco apoiava Kadafi. Abdul Jalil e Mahmoud Jubril, por exemplo, foram respectivamente ministro da Justiça e chefe de área de desenvolvimento do governo até fevereiro deste ano. O comandante das forças rebeldes do NTC, o general Abdel Fatah Younes (ex-ministro do Interior) era o braço direito de Kadafi e com ele deu o golpe de 1969 que derrubou o rei Idris. Foi seqüestrado pelos muçulmanos em julho último e assassinado. Suspeitava-se que mantivesse ligações com o ditador. Outra possibilidade é o líder da resistência no exílio, Ali Tarhouni um acadêmico que retornou dos Estados Unidos para assumir as finanças rebeldes. Será preciso, também, colocar alguém para recuperar o arrasado setor petrolífero, razão maior – para as potências ocidentais – da guerra, tentando não repetir os erros cometidos no Iraque, onde o afastamento radical dos membros do partido Baath conduziu a um vácuo de poder e uma descontinuidade administrativa até hoje não superada. Pessoas como Shokri Ghanem, responsável pela liberalização relativa da economia líbia e pela abertura do setor petrolífero, que desertou, igualmente é visto com suspeição pelo seu passado, mas pessoas como ele serão essenciais nesta fase pós-Kadafi.
Os dois principais grupos étnicos, árabes e berberes, odeiam-se e muito provavelmente continuarão brigando entre si pelos próximos séculos. Militantes que desceram das montanhas ocidentais, responsáveis pelas maiores derrotas sofridas pelas forças do governo, mostraram desorganização e crueldade em relação à população civil e aos adversários, tomando uma cidade após a outra, na sua marcha até a capital. Em compensação, causou surpresa o fato de que os três filhos de Kadafi, presos na semana passada, não tenham sido torturados nem mortos.
O ditador líbio governou num regime de oposição zero, dando-se ao luxo da prática das mais curiosas excentricidades. Denis Macshane do jornal espanhol El Pais, lembra do comparecimento de Kadafi a um compromisso oficial maquiado como Barbie e de sapatos de salto alto. Não existem grupos com qualquer tradição organizativa na Líbia, onde era proibido reclamar. Isso não significa que a população vá aceitar um governo de não-líbios  Entre as múltiplas batalhas que terão de sustentar para consolidar-se no poder, os novos dirigentes começam uma de imediato: apressar a retirada das forças da OTAN. Facção alguma terá sucesso se não conseguir livrar-se da presença estrangeira, mesmo que nos primeiros meses não consiga sobreviver sem ela.     
 

Vitor Gomes Pinto
Escritor. Analista internacional