Reforma da saúde e a crise americana

Bem Paraná

Os Democratas não têm opção: ou aprovam alguma reforma da saúde nesta legislatura ou se arriscam a perder, nas eleições de novembro de 2010, sua confortável maioria de 59% na Casa dos Representantes e no Senado. Oito meses após ser empossado, o presidente Barack Obama joga uma parada decisiva no mais movediço de todos os terrenos da política norte-americana. Antes dele, a luta política e o lobby dos interesses financeiros da saúde (inclui o corporativismo da Associação Médica Americana) derrotaram todos os que tentaram desde 1934: Franklin Roosevelt, Truman, Eisenhower, Johnson, Nixon, Ford, Carter e Clinton, além do senador Ted Kennedy. Agora, os Republicanos vislumbram uma imperdível oportunidade de livrarem-se de vez da imagem negativa deixada por Bush impondo um revés a Obama na sua principal promessa de campanha: reduzir gastos e assegurar cobertura universal em saúde.
Os EUA são o país que mais gasta em saúde – 2,2 trilhões de dólares ao ano (U$ 7.166 per capita, o dobro da média das nações altamente industrializados) – representando 18% do orçamento atual com o sério risco de afundar de vez com a economia caso continue a crescer e alcance, como é esperado, a incríveis 25% em 2025 e 49% em 2082. Dos atuais 307 milhões de habitantes, 46% possuem seguro-saúde, 36% têm cobertura dos programas públicos e 18%, ou 55 milhões de pessoas, não contam com qualquer proteção. Mesmo os segurados estão ameaçados de ir à falência em caso de doença grave ou crônica, calculando-se que 2/3 das bancarrotas pessoais têm como causa dívidas com seguradoras de saúde, hospitais e médicos (o dobro em relação a 2001). Um casal normal deve economizar pelo menos 300 mil dólares para fazer frente, na velhice, a despesas com saúde não cobertas pelas Seguradoras. Estas cobram franquias cada vez mais elevadas, exigem co-participação dos segurados, recusam velhos e doenças pré-existentes, preferem jovens sadios como novos clientes. Os resultados têm sido vexatórios para a maior economia do mundo, classificada em 42º lugar entre todos os países no ranking de mortalidade infantil, 46º em expectativa de vida ao nascer e 37º em performance do sistema de saúde. Mesmo na rica Califórnia, 15º das crianças são obesas, 17% das mulheres de meia idade não fizeram mamografia e 31% dos idosos não foram vacinados contra influenza. Num artigo para o Worthington Daily Globe de Minnesota intitulado “Seu Plano de Saúde pode arruiná-lo”, Leonard Rodberg, professor de estudos urbanos em Queens, acusa as Seguradoras de fazerem propaganda enganosa. Para Márcia Angel da organização Médicos para um Plano Nacional de Saúde cuja proposta está no Congresso, “o problema é que tratamos a saúde como uma mercadoria e não como um serviço social. Os cuidados ao invés de serem vistos sob o prisma da necessidade médica o são pela capacidade de pagá-los. O mercado é bom para muitas coisas, mas não para distribuir atenção à saúde”.
A proposta de Obama visa universalizar gradativamente a cobertura, garantir a escolha de Planos de Saúde e médicos, proteger as famílias da bancarrota por dívidas de saúde, investir em prevenção e bem-estar, manter a cobertura em caso de perda de emprego, eliminar barreiras por doenças pré-existentes, permitir a portabilidade (troca) de Planos, melhorar a qualidade da atenção, dar sustentatilidade fiscal no longo prazo, eliminar gastos desnecessários. As companhias seguradoras serão fiscalizadas não podendo cobrar exageradamente por fora nem recusar idosos e doentes, além de serem obrigadas a oferecer gratuitamente serviços preventivos como checkups e mamografias regulares. Os custos estão estimados em 600 bilhões de dólares em dez anos, mas a oposição republicana fala em no mínimo um trilhão. As fontes de recursos incluem uma polêmica taxação sobre os Planos dos mais ricos e a eliminação dos lucros e custos administrativos hoje alimentando as Seguradoras (em torno de 50% do valor do prêmio de cada seguro vai para estes gastos e propaganda). A chamada universalização (cuidados de saúde para todos) do sistema de saúde norte-americano prevê a expansão de suas três variantes principais: a) seguros-saúde privados coletivos adquiridos pelas empresas como benefícios a seus empregados que pagam uma parte menor do prêmio; b) serviços custeados pelo governo e executados por prestadores privados como é o Medicare que atende idosos; c) serviços públicos via Medicaid (para pobres), Departamento de Veteranos, Centros de Saúde Comunitários, instituições que atendem prisioneiros, funcionários públicos, militares, guarda costeira, indígenas e migrantes.
Obama não tem ilusões de que este será um processo fácil, mas insiste em que “a reforma da saúde não pode mais esperar e não esperará outro ano”. O projeto final será negociado acatando parte das pressões da direita e das Seguradoras que não querem, por exemplo, uma Agência como a brasileira ANS para fiscalizá-las. A discussão, mesmo sob forte influência política e corporativa, tem sido amplamente democrático e baseado numa riqueza invejável de informações acessíveis a todos tanto sobre o orçamento para 2010 quanto sobre o estado de saúde dos vários grupos populacionais. 


 


Vitor Gomes Pinto
Escritor. Analista internacional