Resistência no Tibete

Vitor Gomes Pinto

Neste começo de verão tibetano a incrível luminosidade de uma tarde de domingo com seus 20 graus à sombra é um convite irresistível para as centenas de peregrinos que acorrem prestimosos ao velho centro de Lhasa, a capital, para prantear seus deuses. Alguns com as tradicionais lanternas e velas de manteiga feitas do leite e da gordura dos iaques, outros com as túnicas e os lenços do mais puro branco, cruzam em passos lentos o impecável chão de ladrilhos da larga praça em frente ao Templo de Jokhang, o mais sagrado local de adoração a Buda. Turistas vindos do interior, por seu turno, apressam-se para ainda terem tempo de visitar o imponente Potala, o Palácio da Meditação. No burburinho das duas da tarde, repentinamente as labaredas se erguem, movendo-se entre o povo no ritmo desesperado dos dois homens que num movimento ágil e brusco acabavam de atear fogo às próprias vestes, imolando-se no protesto definitivo contra a ocupação chinesa do Tibete.

Guardas vermelhos bem treinados dois minutos depois surgem como que do nada e abafam os mártires com mantas que pareciam desde sempre estar prontas para serem usadas exatamente com essa finalidade. Dorjee Tseten, da vizinha província de Gansu, um menino em seus 19 anos, já caíra e não tinha mais vida. O outro, conhecido apenas como Dargye, com queimaduras por todo o corpo, ainda respirava. Nenhum alarde, como se nada houvesse ocorrido, mas de imediato o Exército ocupou a capital trazendo de volta as nuvens da repressão. A polícia municipal, logo depois, negou a ocorrência de autoimolações.

O Tibete, situado ao norte do Himalaia é a região mais alta do mundo e desde o século VII – quando se tornou o centro de referência de uma variante do budismo, o lamaísmo – luta por sua independência, efemeramente conquistada em 1913 e perdida em 1950 quando foi invadido pela China. Em seguida o Dalai Lama assinou o Acordo dos 17 Pontos que transformou o país em mais uma das regiões autônomas chinesas, mas nove anos depois ele não resistiu à pressão das forças de ocupação e liderou centenas de monges numa marcha pela cordilheira que os levou a Dharamsala no estado indiano de Arunachal Pradesh, onde instalaram o Governo do Tibet no Exílio. 

O Lamaísmo busca o aperfeiçoamento através do acúmulo gradual de mérito e sabedoria no caminho da Iluminação, atingido em seu grau máximo por Buda, de quem o Dalai Lama é uma reencarnação, com a missão de comandar espiritual e materialmente o povo tibetano.  Um Lama é identificado pelos sábios entre 2 e 3 anos de idade e uma Regência assume até que ele atinja a maioridade. O 13º Lama morreu em 1933 e Tenzin Gyatso (14º e prêmio Nobel da Paz de 1989) nasceu dois anos depois, mas somente em 1950 Sua Santidade, como é tratado, assumiu a completa responsabilidade política como chefe de estado. Passou a liderar um movimento pacifista que até hoje não deu resultados práticos e é cada vez mais contestado pelos seus compatriotas diante da intransigência da China que os acusa de serem uma seita separatista.

Existem três outros ramos do lamaísmo no Tibet. Dois deles restringem-se ao campo espiritual, mas Ogyen Trinley Dorje, o Karmapa Lama (sua ordem foi criada pelo mongol Kublai Khan no século XIII), de 26 anos, considerando a idade avançada do Dalai Lama, surge como um sucessor provável caso não seja possível seguir a tradição de reiniciar tudo com um bebê. O Karmapa é aceito pelo governo chinês que procura cooptá-lo. Numa tentativa de separar os poderes laico e religioso, há pouco foi eleito, em Dharamsala, um 1º Ministro do Governo no Exílio: Lobsang Sangay, um intelectual formado em Harvard que nunca morou ou visitou o Tibet e parece ter poucas chances de ser aceito pelos monastérios e pelo povo tibetano.

As tensões entre o governo de Pequim e o dos exilados tibetanos atingiram um clímax em 2008 quando distúrbios de rua precederam as Olimpíadas, deixando 200 mortos. Agora, os monges adotaram a tática do auto-sacrifício público e 36 já se imolaram nos últimos quatorze meses, mas esta é a primeira vez que isso ocorre em Lhasa. A etnia Han, à qual pertencem nove de cada dez chineses, incapaz de eliminar o inimigo, cada vez mais militariza o Tibet, na esperança de algum dia finalmente ser aceita.

 

Vitor Gomes Pinto
Escritor. Analista internacional