Saudades de Perón

Bem Paraná

A grande dúvida de hoje na Argentina é se ela saberá aproveitar a oportunidade ou se seus políticos conseguirão afundá-la uma vez mais. Os altos preços alcançados pelos principais produtos nacionais, a crescente demanda internacional por alimentos e petróleo, o crescimento do PIB superior a 9% no ano dão esperanças de retorno à belle époque, na virada do século XIX para o XX, quando o modelo agroexportador se consagrou. A Argentina é o 2º exportador mundial de milho cujos preços aumentaram 90% este ano; é 3º na soja que subiu 73% e 4º em trigo que subiu 74%. Não obstante, o seguro anti-calote sobre os bônus emitidos pelo governo é de 5%, contra 0,45% dos papéis brasileiros e peruanos, indicando uma forte desconfiança dos investidores e do mercado quanto à seriedade da administração de Cristina Kirchner.
Até 11 de março o governo tributava em 35% o valor das exportações de soja e um pouco menos do girassol, trigo e milho. Os agricultores havia muito não ganhavam tanto dinheiro e, quando veio o pacote governamental impondo um sistema de taxação progressiva sobre esses quatro produtos agrícolas com um gatilho para acompanhar oscilações do mercado (em alguns casos o imposto subiria a 90%), enfureceram-se e decidiram resistir cortando a produção, desabastecendo os supermercados, bloqueando estradas. O casal Kirchner partiu para a guerra aberta contra os ruralistas, acusando-os despropositadamente de fascistas e colocando nas ruas os piqueteiros peronistas. A batalha durou 128 dias e terminou em 17 de julho com a humilhante derrota de Néstor e Cristina, que viram seu sonho de dirigir a nação ao menos por 16 anos ruir ou transformar-se numa longínqua possibilidade. Às 4 da madrugada o senador radical Emilio Rached de Santiago del Estero, com quem o governo contava, disse “não” e empatou  a votação no Senado em 36×36. Então aconteceu o que parecia impossível. Provando que vices não merecem confiança, Julio Cézar Cobos, um ex-radical que Cristina aceitou a contragosto como companheiro de chapa, demorou meia hora e afinal como presidente da casa derrubou o projeto com seu voto de minerva. 
De maneira simplificada, venceu o modelo agroexportador e perdeu o neodesenvolvimentismo industrial. Acusada de arrogante e autoritária, como o marido, mas acima de tudo inábil e sem liderança efetiva, Cristina Kirchner, que viu seu apoio popular baixar de 56% em dezembro para os atuais 20%, esteve à beira da renúncia, decidindo por fim continuar mesmo com minoria parlamentar nos 3 anos e meio que lhe restam de mandato. Os argentinos choraram de alegria e de saudade do caudilho Juan Domingo Perón, lembrando seu primeiro governo de 1946 a 1950 quando liderou o justicialismo no último período de riqueza e progresso conhecido pelo país. Depois vieram a crise econômica interminável, a submissão ao FMI e aos seus planos de estabilização, os golpes militares, os anos de chumbo de Videla e companhia, a desindustrialização comandada pelo ministro Martínez de Hoz, o general Galtieri invadindo as Malvinas e perdendo a guerra para os ingleses, a hiperinflação que Raúl Alfonsín não conseguiu controlar, os dez anos de neoliberalismo de Carlos Menem e a paridade entre peso e dólar, a queda de De La Rúa, a moratória da dívida externa decretada em dezembro de 2001 por Adolfo Rodríguez Saa nos onze dias em que foi presidente, o calote parcial de Nestor Kirchner em 2005 e a gradativa recuperação da economia argentina. O que virá agora? A idéia de que a Argentina volte a inserir-se no mundo como um grande exportador de bens primários agrícolas&pastoris e importador de bens de capital e manufaturados reúne temporariamente num mesmo bloco a ultraconservadores do campo e grupos de intelectuais e políticos de centro-esquerda, mas a indústria, que tem gerado mais empregos e que apesar das marés contrárias já responde por 35% do PIB nacional, não cederá com facilidade o espaço duramente conquistado. Os compradores de matérias-primas de hoje não são mais ingleses e sim chineses pouco preocupados com direitos trabalhistas. E Perón não pode voltar.   


 


Vitor Gomes Pinto
Escritor. Analista internacional