Na noite de sábado, ativistas Taliban percorreram o noroeste do Paquistão, em torno de Peshawar e junto à fronteira com o Afeganistão, anunciando que a trégua vigente na região desde setembro do ano passado estava rompida. Na mesma noite e no domingo setenta pessoas, a maioria militares, perderam a vida em ataques suicidas que abriram a temporada de vinganças contra o massacre da Mesquita Vermelha. O general Pervez Musharraf, o presidente-ditador do Paquistão, depois de longas e inúteis negociações, cumpriu a ameaça de matar os estudantes que permanecessem no templo e ordenou a invasão pelas forças de segurança que em 36 horas venceram a feroz resistência dos radicais islâmicos, numa operação bélica que deixou pelo menos 240 vítimas fatais (o Ministério do Interior reconhece a existência de 102 corpos, sendo 91 civis e 11 soldados).
A Mesquita Vermelha ou Lal Masjid no idioma urdu, que deve o nome à cor de suas paredes (a cúpula é branca), na verdade é um complexo arquitetônico inaugurado em 1965 e situado na área central de Islamabad, a capital, que além do templo tem a Jamia Hafsa, a madrassa (escola religiosa) feminina. Outro prédio, a escola masculina (Jamia Faridia), está a poucas quadras do templo. No total, ali viviam ou estudavam cerca de dez mil jovens. Embora o Paquistão seja oficialmente uma república islâmica e 97% da população de 170 milhões de pessoas se considere muçulmana, as posições cada vez mais extremas defendidas em Lal Masjid só tinham apoio na distante província do noroeste, de onde provinha a grande maioria de seus estudantes. Nos tempos de liderança do clérigo Maulana Muhammad Abdullah, o fundador, os ofícios religiosos costumavam ser assistidos por altos membros do governo e da elite paquistanesa, que para lá enviavam seus filhos e filhas. Ali foram recrutados muitos dos militantes que lutaram ao lado dos afegãos contra a ocupação soviética nos anos 80 e, antes de setembro de 2001, apoiaram o governo taleban e enfrentaram os norte-americanos. Em 1998, depois do assassinato nunca esclarecido de Abdullah, no interior da Mesquita, seus dois filhos – Maulana Abdul Aziz e Abdul Rashid Ghazi – assumiram e passaram a denunciar o governo de Musharraf, o principal aliado dos EUA na política de Bush contra o terror da Al-Qaeda, como anti-islâmico, desafiando-o frontalmente e tramando diversos atentados visando matá-lo. Da Mesquita originaram-se campanhas cada vez mais agressivas para adoção integral das mais restritivas leis da sharia islâmica e recentemente um tribunal foi criado, num desafio frontal às leis do país.
Este ano a tensão foi aumentando. As estudantes (com suporte dos rapazes), por trás das burkas e vestindo negro de cima a baixo, deixavam a madrassa para atacar cafés com serviços de internet e casas de diversões que consideravam prostíbulos, seqüestrando mulheres que acusavam de conduta imoral. Quando entraram numa clínica de acupuntura e capturaram o proprietário e seis chinesas, submetendo-as a torturas antes de libertá-las de Jamia Hafsa – o que provocou forte reação de Pequim exigindo providências de Islamabad – a paciência do governo paquistanês acabou e, com ela, a liberdade para os panfletos, a estação de rádio, o web site, os alto-falantes que clamavam dia e noite pela queda de Musharraf. Então, os principais partidos políticos e a mídia pressionavam o governo a agir e o criticavam por uma demora que era interpretada pelos clérigos e estudantes, cujas posições cada vez mais se assemelhavam às dos Taliban afegãos, como fraqueza.
Num esforço de última hora, o ex primeiro ministro Chaudhry Hussain negociou a rendição de Abdul Rashid Ghazi, encontrando-o decidido a transformar-se num mártir. “Retorno muito desapontado”, disse Hussain. “Oferecemos-lhe muito, mas ele não estava pronto para aceitar nossas propostas”. De imediato o ataque – a Operação Silêncio – começou, primeiro com o rompimento de três brechas nos muros vermelhos e, pouco a pouco, com a ocupação à bala do templo e das salas e dormitórios da madrassa. Os estudantes, portando fuzis Kalashnikov e armamento pesado, impuseram dura e inesperada resistência, imolando-se pelo ideal que defendiam sob o fogo implacável da artilharia que ecoou sem parar pelas ruas da capital. Os dois clérigos tiveram destinos distintos. O mais pacato, Abdul Aziz, tentou fugir disfarçado de mulher e protegido pela burka, sendo identificado e preso. Rashid Ghazi, 43 anos e um garoto rebelde pouco afeito à religião com um estilo de vida ocidental na mocidade, radicalizou-se a partir da perda do pai e terminou sendo uma das vítimas da invasão, metralhado pelos soldados no subsolo da madrassa no segundo dia de combate.
Um outro clérigo Taliban, Maulana Fazlullah, sob cujo comando ocorreram os ataques próximo a Peshawar, convocou todos os muçulmanos (na prática os que comungam com suas idéias) à Jihad, a guerra santa contra o governo paquistanês. Por enquanto, a opinião pública está ao lado de Pervez Musharraf (assim como os Estados Unidos), que recuperou pelo menos parte do prestígio perdido devido a sua decisão de demitir sumariamente o presidente do poder judiciário. Há eleições previstas para outubro próximo e a oposição, por mais ruidosa que seja, tem escassas condições de derrotá-lo. Contudo, uma intensificação da resistência por parte das facções muçulmanas mais radicais poderia fornecer-lhe a desculpa ideal para declarar o estado de sítio e perpetuar-se no poder.
O Paquistão, a única potência nuclear do mundo islâmico, é uma meia democracia, um grande país instável numa região instável. O silêncio absoluto imposto à Mesquita Vermelha e a Jamia Hafsa logo começará a ser ouvido, lá e no mundo, tornando-se uma base pouco confiável para a paz.
* Escritor. Analista internacional