A Lancaster House, em Londres, sediou nessa quinta feira de pós-carnaval mais uma conferência internacional destinada a salvar aquela que é tida como a mais falida de todas as nações do mundo: a Somália, em pleno chifre da África no Oceano Índico. A capital, Mogadíscio, é uma terra sem lei, em guerra permanente, onde a comida é artigo de luxo e a milícia al-Shabaab (Partido da Juventude, numa tradução livre), mesmo tendo sido recentemente expulsa pela Amisom – Missão Sul-Africana da ONU na Somália -, dita as regras.
Logo em seguida à unificação dos territórios inglês e italiano para formar, em 1960, a República da Somália, limites mal definidos deram motivo a hostilidades com os vizinhos Quênia e Etiópia. Quase uma década depois o 1º Ministro Ali Shermake foi assassinado por um membro da sua guarda, Mohamed Barre que, aliando-se à ex-URSS, converteu o país ao socialismo científico. Não demorou muito e, ao invadir um estado fronteiriço etíope para proteger uma área habitada por somalis, foi de lá expulso por soldados cubanos e soviéticos, o que o fez mudar de lado, aderindo ao bloco da Guerra Fria liderado pelos Estados Unidos. O período de relativa estabilidade terminou em 1991, quando a deposição de Barred por milícias islâmicas conduziu o país a violentas lutas tribais e à guerra civil, resultando na primeira vinda da Força de Paz da ONU que lá ficou por quase dez anos, até retirar-se (retornou em 2007) ao concluir ser impossível manter a ordem e a segurança. Seguiu-se um período de caos com crescente presença de forças norte-americanas.
Numa tentativa de forçar a normalização os organismos internacionais apoiaram um Governo Transitório chefiado por Abdullah Yussuf que se instalou em 2004 no Quênia, mas no ano seguinte os piratas começaram a seqüestrar os navios que traziam alimentos, forçando a suspensão dos programas de ajuda externa. O ano de 2006 foi o pior de todos, com Mogadíscio sendo submetida a violências e ao terror devido à luta entre as milícias, até que em junho a União Corte Islâmica, UCI, tomou o controle da capital prometendo ordem sob um Estado islâmico que reabriu o aeroporto e os portos, retirou o lixo das ruas e conseguiu restabelecer um pouco de paz, mesmo com medidas impopulares como a de proibir  as pessoas de assistirem TV e  de mascar as folhas de Quat, um estimulante e alucinógeno muito comum na região. De imediato veio a invasão pelo exército etíope e um novo banho de sangue agravado pela declaração de uma Jihah (guerra santa) pelo Sheik Sharif Ahmed contra a Etiópia por apoiar o Governo Interino. Na primeira intervenção militar direta norte-americana, seus aviões bombardeiam o sul do país. A essas alturas, todos os atores eram acusados de crimes contra a humanidade, mas o Conselho de Segurança da ONU mantinha-se em silêncio.
Intensificou-se a pirataria com o seqüestro de um barco ucraniano (a OTAN enviou uma frota naval para reavê-lo), pedido de resgate de 25 milhões de dólares por um petroleiro saudita, rapto do casal britânico Paul e Rachel Chandler (libertado um ano depois) e, afinal, Yussuf renunciou, com o que assumiu a presidência do país o Sheik Sharif Ahmed. Soldados da Força de Paz da ONU continuaram sendo vítimas de ataques suicidas.  Numa confirmação dos temores norte-americanos, o al-Shabaab declarou formalmente em fevereiro de 2010 sua adesão à Al-Qaeda e, mantendo sua presença na capital, dominou o centro e o sul do país, passando a impedir a entrada de comboios humanitários. O estado de fome, estabelecido em julho do ano passado pelas Nações Unidas no sul, somente agora foi suspenso. Ainda assim, atualmente 1/3 da população (2,3 milhões de pessoas, sendo que 73%  na região dominada pelo al-Shabaab) necessita alimentos e abrigo.
A Conferência humanitária de Londres teve a participação do Secretário Geral da ONU, Ban Ki-Moon, do 1º Ministro britânico David Cameron, da Secretária de Estado Hillary Clinton, além de líderes de mais de 50 países, e não chegou a lugar algum. Especialistas em questões relativas ao chifre da África, como Sally Healy em declaração ao The Guardian, julgam que a intervenção internacional favorecendo algumas facções está agravando o problema ao bloquear as chances de o povo somali encontrar suas próprias soluções. Não obstante, a seguinte estratégia global foi estabelecida para a Somália: a) substituir o Governo Provisório por uma Autoridade Curadora que ficará até que uma nova Constituição seja escrita e aprovada por referendo popular; b) realizar eleições antes do fim do ano para eleger novos Presidente, 1º Ministro e o Parlamento. A questão é: que relação tem isso com a realidade somali? Uma nova conferência internacional humanitária de alto nível já está marcada para junho na Turquia. 
 
Vitor Gomes Pinto
Escritor. Analista internacional