Aos trancos e barrancos, alguns passos para trás e outros para a frente, o aymará Evo Morales, o intelectual Álvaro García Linera e o MAS – Movimiento al Socialismo, tentam administrar a Bolívia. O grupo, de escassa capacidade técnica e na liderança de um país sempre à beira da falência, caiu na armadilha da aliança com Hugo Chávez, aceitando sem discutir suas idéias e seu dinheiro até criar uma resistência que, na sociedade boliviana, não pára de crescer. Fascinados pela promessa de poder eterno meteram-se no complexo, mas – em se tratando de América Latina – costumeiro caminho de uma reforma da Constituição cujo artigo principal é a possibilidade de reeleições sem limite. Por inexperiência ou ambição cometeram o erro de armar um processo extremamente complexo, mexendo ao mesmo tempo em quase todos os aspectos essenciais da organização nacional e da vida das pessoas, com a idéia de refundar a Bolívia. O resultado, antevisto pelos analistas mais experientes, não poderia ser outro: uma terrível confusão agora compreendida pela FAM, a Federação de Associações Municipais da Bolívia, em cujas palavras “a um ano de Assembléia Constituinte, constatamos que ela enfrenta problemas de toda índole. Temas que pareciam de fácil resolução converteram-se em verdadeiras ante-salas de batalhas entre regiões, partidos políticos e até entre grupos sociais”.
O prefeito do Departamento de Chuquisaca (equivale a governador de Estado no Brasil, eleito mas sem autonomia), David Sánchez, renunciou – ao que parece de maneira irrevogável – para não ficar entre sua cidade Sucre e La Paz que lutam encarniçadamente pela honra de sediar todos os poderes da República. É uma briga tão radical que no domingo um total de 1.157 bolivianos em Sucre e arredores completaram vinte dias de greve de fome. São políticos, estudantes, professores, donos e vendedores de barracas de verduras do mercado, membros de uma associação de cegos, deficientes, pedreiros, dispostos a sacrificar-se se a Constituinte não voltar atrás de sua decisão de não discutir o que chamam de capitalidad plena, ou seja, Executivo, Legislativo e Judiciário sediados numa mesma cidade. Também reivindicam a anulação do processo contra quatro juízes do Tribunal Constitucional (que se opunham a medidas discricionárias dos governistas), votado pelos deputados do MAS em sessão na qual os oposicionistas foram corridos do plenário a socos e pontapés.
Enquanto o prefeito de Cochabamba, Manfred Reyes Villa, pedia a renúncia de Evo Morales “por sua absoluta incapacidade em encarar e resolver os conflitos criados por seu governo”, seu colega de Santa Cruz, Percy Fernández, concluía que a única forma para conviver bem no país é a formação de duas nações, uma Oriental (de los Llanos) composta por Santa Cruz, Pando, Beni e partes de Chuquisaca e Cochabamba, e a outra Ocidental com os indígenas do Altiplano. Seu argumento: “agarraram-se ao Poder, têm a polícia, o governo, as leis, o orçamento, tudo podem organizar, e nós somos os piolhos”. Em contraposição, o vice-presidente García Linera clama pela mobilização popular para derrotar o que chama de “Direita”.
Sobre tudo paira a mão soberana de Hugo Chávez. Sua presença mais visível se dá pelo programa “Bolívia muda. Evo cumpre”, pelo qual este distribui a municípios de sua escolha (mediante apresentação de projetos de desenvolvimento) cheques de 100 a 150 mil dólares. O dinheiro é venezuelano e a autoridade municipal beneficiada precisa assinar um documento de responsabilidade que lhe é entregue e em seguida recolhido por Douglas Pérez, Encarregado de Negócios da Embaixada da Venezuela na Bolívia. O jornal La Razón de La Paz percorreu as várias repartições governamentais que administram iniciativas de apoio aos municípios (p.ex., o Diretório Técnico de Fundos, o Ministério de Planejamento), mas nenhuma põe a mão nos recursos venezuelanos. “O Congresso não participou. É um talão de cheques em branco que tem o Presidente para beneficiar certos municípios”, declarou o especialista em temas municipais Iván Arias.
Para coroar a fase de notícias indigestas para o governo de Evo Morales, o Informe Mundial 2007 sobre Drogas da ONU, agora divulgado, informou que a área de cultivo de folhas de coca aumentou no último ano em 8% na Bolívia, a produção de folhas de coca em 17,7% e a produção de cocaína em 17,5%. Principalmente devido ao incremento do narcotráfico no Vale do Chapare o país, que produzia 8% da cocaína consumida no mundo, agora produz 10%. É um negócio altamente rendoso, considerando que um quilo do produto vale cerca de 1.300 dólares em La Paz, 3.000 em São Paulo, 24.000 em Nova York e 107.000 em Moscou. O embaixador dos EUA, Philip Goldberg foi chamado ao Palácio de Quemados pelo chanceler boliviano por ter declarado que a coca e o narcotráfico haviam se expandido no país, sendo-lhe lembrado que isso ocorria devido à demanda de consumo dos norte-americanos. O diagnóstico, contudo, revela que a droga que chega nos EUA é a proveniente da Colômbia (onde a produção está estabilizada), enquanto a cocaína da Bolívia é destinada em sua maior parte ao Brasil que a consome ou reexporta.
A população reage como pode. Recentes pesquisas de opinião promovidas pela mídia revelam que 85% não acreditam que a Assembléia Constituinte conseguirá consenso para aprovar um projeto de Carta Magna até 14 de dezembro (a data original era em agosto) e 56% consideram que o país foi mal em 2006, além de 5% que votaram no “regular”. Diante da pergunta: “A que país a Bolívia deve dar prioridade em suas relações internacionais?”, 48% responderam Todos; 22,5% os EUA; 21,5% a Venezuela; 6% o Brasil e 2% Nenhum. Entre tantas desavenças, o problema racial vai sendo irresponsavelmente fermentado, aprofundando as divisões entre os índios Collas do planalto e os Cambas da Meia Lua, de Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija, onde estão as riquezas bolivianas.
Vitor Gomes Pinto
Escritor, Analista internacional
Autor do livro Guerra en los Andes
(Ed. Abya-Yala, 2ª. Ed. 2007)