A África continua envolta em seus velhos fantasmas herdados dos tempos em que as grandes potências ocidentais dividiram o continente em nações segundo suas próprias conveniências, criando fronteiras artificiais que obrigaram povos com raízes comuns por vezes seculares a viverem em ilhas sem identidade étnica definida. Na ordem do dia, os tuaregues tentam criar uma pátria que chamam de Asawad no norte do Mali. Tradicionalmente nômades, reúnem cerca de 1,3 milhão de indivíduos espalhados pelo Níger (60%), Mali (33%), Burkina Faso, Argélia, Líbia e Mauritânia, nos desertos e savanas do Saara e do subsaara. Depois que o presidente malinês Amadou Toumani Touré foi deposto em março deste ano, combatentes tuaregues tomaram várias cidades e hoje ocupam pelo menos a metade do país, o que lhes dá força para exigir autonomia.
Os rebeldes somam antigos defensores da independência a um grande número de componentes fortemente armados das milícias que protegiam Muammar Gaddafi e que abandonaram a Líbia logo em seguida ao assassinato do ditador e à queda do seu governo em outubro de 2011. Inclui também uma importante e dominante facção de militantes da Al-Qaeda do Magreb Islâmico (AQMI) e, ainda, os Defensores da Fé Islâmica (Ansar Dine) que estão implantando, a la-Taleban, a Sharia (a lei muçulmana) nos territórios ocupados com todos seus corolários de restrições às mulheres e às modernidades. A ONU, que decidiu enviar uma força-tarefa com mais de três mil homens para reconquistar o norte do Mali, reconhece que apesar da diversidade de interesses presente no grupo insurgente, praticamente todos seus integrantes são tuaregues.
Outra guerra com nítidos componentes étnicos acontece um pouco mais para o centro do continente, na República Democrática do Congo, a RDC, que já foi o Zaire e viveu um auge socialista com Patrice Lumumba para depois aliar-se com Mobutu ao ocidente, desde então submetendo-se aos azares dos programas de ajuda do FMI e Banco Mundial que privilegiaram as grandes corporações fazendo crescer as desigualdades e a pobreza nesse que é o segundo mais populoso país de toda África. A RDC, com suas 250 etnias e mais de 700 idiomas, onde os cantores de soukous e de rumba são famosos, ao lado do vizinho Burundi tem o menor PIB per capita do mundo, apesar das minas de diamante e de ouro e dos depósitos (os melhores) de cobre e cobalto da província de Katanga. A economia é informal e suas riquezas não se refletem no PIB. Queremos nossa nação de volta diz o coronel Vianney Kazarama no comando do M23, força rebelde apoiada por Ruanda, ao tomar a importante cidade de Goma e receber a imediata adesão dos 3 mil policiais e militares ali sediados.
Egito e Sudão, os dois gigantes do norte da África vivem situações distintas. A primavera árabe derrubou o governo militarista de Hosni Mubarak, mas colocou em seu lugar a Irmandade Muçulmana e agora o presidente Mohamed Morsi, na raiz da súbita fama conquistada ao mediar o conflito palestino com Israel, baixou um decreto assumindo superpoderes. Parece decidido a ser o novo faraó, com o que os partidos da oposição e boa parte da população voltaram à praça Tahir para dizer que não querem outra ditadura. Enquanto isso, lutas na mal definida fronteira minam o acordo de paz firmado em setembro último entre Sudão e Sudão do Sul. A economia deste que é desde novembro do ano passado o mais novo membro da ONU, estava paralisada com o bloqueio sudanês aos poços de petróleo que constituem a única verdadeira fonte de renda para o regime de Salva Kiir Mayardit. O Sudão do Sul é hoje um país inviável que luta por respirar. Durante a estação chuvosa que terminou no final de outubro o país é intransitável, mas agora, com a seca e mais calor, a insegurança aumenta tanto na fronteira quanto na capital, Juba, onde não há eletricidade e o único transporte disponível é a motocicleta, ou boda-boda, que nem sempre o levará ao destino desejado.
É possível reinventar a África? A luta dos tuaregues, tentando redesenhar o mapa regional, pode ser o início de uma nova etapa na qual os povos africanos finalmente se convençam de que o destino de cada um está em suas próprias mãos.
Vitor Gomes Pinto
Escritor. Analista internacional