No Sudão, o maior país da África com 40 milhões de habitantes, conflitos que remontam à independência em 1.946 transformaram-se em guerra permanente nos últimos 25 anos. A luta fratricida entre norte e sul e os conflitos de Darfur (a terra dos Fur) no oeste, deixaram um saldo macabro de mais de 2 milhões de mortos, além de pelo menos 4,1 milhões que tiveram de deixar suas terras, transformando-se em párias do mundo. Atualmente, 2,5 milhões estão em mais de cem campos de refugiados, à mercê do deserto. Agora, o promotor do Tribunal Penal Internacional (TPI), o argentino Luis Moreno-Ocampo acusou formalmente o presidente do Sudão, o árabe-descendente Omar Hassan Al-Bashir, de crimes contra a humanidade e genocídio, afirmando que ele não precisou de balas, pois a fome, o medo e os estupros fizeram silenciosa e eficazmente o serviço.

É uma novidade por alcançar a um governante no poder com acusações tão fortes. Slobodan Milosevic da Sérvia e Charles Taylor da Libéria, indiciados por outros crimes, acabaram afastados do poder, mas no curto prazo não se espera que o mesmo aconteça com Bashir, uma vez que está descartada qualquer  intervenção do Conselho de Segurança da ONU, devido ao veto de Rússia e China, aliados do governo do Sudão e não integrantes, como os Estados Unidos, do TPI.

A guerra civil que dividiu o país entre norte e sul desde 1983 foi um conflito religioso iniciado pela imposição do Xariá (a lei islâmica) aos povos tribais do sul que são cristãos ou, em sua maioria, seguem crenças africanas tradicionais. A motivação maior, contudo, sempre foi econômica, pois é no sul que estão as grandes reservas de mogno e de petróleo, estas estimadas em 6,4 bilhões de barris (a produção atual é de 400 mil barris/dia). A maior parte da produção sudanesa é de responsabilidade da empresa chinesa CNPC que lidera um consórcio que inclui a Sudapet, estatal sudanesa e a francesa Total. Um acordo de paz firmado em 2005 por Bashir e pelo líder do Movimento de Liberação do Povo Sudanês, Salva Kir, teoricamente colocou fim ao conflito, mas as tensões permanecem na cidade de Abyei, situada na divisa entre as duas regiões, para decidir a que lado pertencem seus poços de petróleo, e junto à
fronteira com Quênia e Uganda onde os cristãos querem a secessão.

Em Darfur, a acusação do Tribunal é de eliminação forçada dos povos Fur, Masalit e Zaghawa, mas também têm sofrido os Núbios e os Nuers, uma tribo com cerca de 2 milhões de nativos geralmente com mais de 2 metros e considerados o povo de maior estatura do mundo. Para os árabes, todos são “zurgas” (crioulos). A guerra é o maior fracasso das políticas humanitárias internacionais e poderá terminar logo por não haver mais a quem matar ou estuprar. A ONU tem lá duas forças de paz. Uma em Darfur com 26 mil homens autorizados mas só 11,6 mil presentes e sob risco permanente (na última semana uma emboscada matou sete capacetes azuis) e outra no sul com 10 mil homens. A falta de apoio logístico é um pesadelo, as estradas sem asfalto dificultam o trânsito dos caminhões de ajuda externa, o governo boicota e a composição híbrida com soldados da União Africana – egípcios e eritreus – muito mais atrapalha do que ajuda. Enfrentam-se rebeldes negros, as milícias árabes Janjaweed criadas por Bashir e o exército nacional que lhes dá cobertura.

As recomendações de Moreno-Ocampo foram encaminhadas a um grupo de três juízes em Haia: Sylvia Steiner do Brasil, Akua Kuenyehia do Gana e Anita Usacha de Látvia. Terão pelo menos seis semanas para decidir se indiciam a Bashir, um ditador pragmático, sem ideologia definida e líder de um regime que não é forte, mas tem vantagem diante de uma oposição fragmentada. A paulista Sylvia, formada na USP e na UNB, foi indicada por Fernando Henrique Cardoso e eleita como juíza do TPI em fevereiro de 2003 para um mandato de nove anos. Aos 55 anos tem pela frente uma das missões mais difíceis de sua brilhante carreira como especialista em direito internacional. As vítimas do Sudão dela esperam um tardio grito de justiça.