Universalização da Saúde: o caso da Turquia

Bem Paraná

O alcance de sistemas nacionais de saúde eficazes é um complexo desafio para países de todo o mundo e não raro, como no Brasil atual, transformou-se em um severo problema político. Na busca de uma resposta, em seu Relatório de 2010 a Organização Mundial da Saúde declarou a cobertura universal em saúde como objetivo prioritário e, no dizer de sua Diretora-Geral, a chinesa Margaret Chan, o mais poderoso instrumento que é possível oferecer, enfatizando que uma boa saúde é essencial para sustentar o desenvolvimento econômico-social e para a redução da pobreza. Universal Health Coverage, significando atenção para todos, é um conjunto de serviços que está disponível quando necessário sem causar aflição ou ruína financeira ao usuário. Dedicando uma edição especial ao tema, a revista inglesa The Lancet concluiu que após as transições demográfica e epidemiológica, agora é a hora de definir como os cuidados à saúde são financiados e organizados. Assim, enquanto alguns dos mais tradicionais modelos de saúde pública, como Reino Unido, Espanha, Portugal, enfrentam crises com o avanço das forças da privatização, outros países (México, Tailândia, Filipinas, Ruanda, Vietnã) se esforçam para reformular seus sistemas.

Com dificuldades e trajetória similares às brasileiras, a Turquia ─ país com 75,4 milhões de habitantes ─ vem sendo considerada como um exemplo exitoso de universalização com base na reforma intitulada Programa de Transformação da Saúde (PTS) que visa aumentar o acesso aos serviços e eliminar a fragmentação e o beco sem saída resultante do sistema criado pela Lei de Socialização dos Serviços de Saúde de 1961. Vários governos haviam tentado, sem sucesso, fazê-la funcionar melhor, perdendo-se no emaranhado das mil regras de acesso, má gestão, subfinanciamento e falta de coordenação entre múltiplos responsáveis, agentes e executores.  
Para a Turquia, assim como para o Brasil, a década foi de crescimento econômico com estabilidade e afluxo de capitais em função das favoráveis condições do mercado internacional. A diferença é que o país conferiu uma efetiva prioridade à educação e à saúde, destinando-lhes parcelas realmente expressivas de seus orçamentos. Os gastos totais em saúde saltaram de 2,7% do PIB para 6,9% e os dispêndios públicos nesta área aumentaram nove vezes, fazendo com que hoje respondam por mais de 75% dos gastos totais com saúde, superiores aos dos demais países do G7 (Rússia 62%, China 54%, Indonésia e México 49%, Brasil 47%, Índia 29%). O gasto per capita em 2010 era de US$ 678, três vezes mais que em 2000.

A rede prestadora de serviços e de custeio via seguro saúde foi gradativamente unificada até chegar ao atual pacote de benefícios para todos que inclui cuidados preventivos, atenção ambulatorial, internações hospitalares, consultas, testes diagnósticos, extrações e próteses dentais, fornecimento de óculos, atenção de emergência, fertilização in-vitro, medicamentos. Cada indivíduo é classificado, para efeitos do PTS, em quatro grupos, sendo que o de famílias com renda per-capita inferior a um terço do salário-mínimo e que inclui 29% da população está isento de pagamentos, pois seus prêmios de seguro são pagos pelo Estado. No grupo de famílias com renda de mais de 2 SM o prêmio mensal chega a R$ 251,00 ou 12% de dois Salários Mínimos.

A atenção é totalmente gratuita para turcos até a idade de 18 anos, assim como para eventos catastróficos (cirurgias complexas), emergências e cuidados intensivos. Quanto aos medicamentos, a participação é de 20% do custo para a população em geral e 10% para os aposentados. Atendimentos em Atenção Primária da Saúde e de prevenção em geral são financiados pelo Ministério da Saúde e não se submetem a qualquer tipo de taxas.
O setor privado também experimentou uma forte expansão graças aos contratos firmados via Organização de Seguros Sociais e sua representatividade subiu de 4,6% dos atendimentos em saúde no país para 17,5% em uma década (2002 a 2011). Na base o sistema flui via Programa de Medicina Familiar iniciado em 2005 e expandido para o país inteiro cinco anos depois para prover serviços gratuitos de atenção primária com ênfase crescente na prevenção de doenças crônicas, vacinação, cuidados pré-natais.

Para enfrentar o desafio dos déficits de recursos humanos e cobrir áreas e regiões mais longínquas ou desfavorecidas, quatro grandes iniciativas foram colocadas em prática: a) mediante acordos com as principais instituições acadêmicas e de representação profissional novas vagas foram abertas para formação de médicos e outros profissionais. Os novos graduados prestam atendimentos catalogados como Serviço Civil Obrigatório durante 300 a 500 dias em regiões carentes; b) elevação dos salários e introdução de incentivos relacionados ao desempenho, aumentando de maneira substancial as remunerações no setor; c) flexibilização dos contratos para trabalhadores da saúde favorecendo locais onde a retenção de recursos humanos é especialmente difícil (numa relação com o caso brasileiro, corresponde a flexibilizar a Lei de Responsabilidade Fiscal); d) tempo integral e dedicação exclusiva para médicos que atuam em unidades públicas. Esta medida gerou resistências de muitos profissionais e de entidades representativas da profissão. Enfim, muitos saíram, principalmente em Istambul, Ankara e em outras grandes cidades, mas isso possibilitou ao Ministério da Saúde contratar novos profissionais, especialmente médicos generalistas e enfermeiros.

Isso não significa que a Turquia – um país com fortes desigualdades econômicas e sociais – tenha conseguido solucionar por inteiro seus problemas relacionados ao sistema nacional de saúde, nem que as respostas lá encontradas tenham aplicação por aqui. É, no entanto, encorajador para quem lida com a saúde pública, que a discussão em torno de sistemas de Cobertura Universal tenha voltado, tantos anos após Alma Ata, a receber prioridade.

Vitor Gomes Pinto
Escritor. Analista internacional. Doutor em Saúde Pública