Ao ser instalada em Caracas a sessão legislativa anual da Assembleia Nacional no dia 5 de janeiro, todos os 112 deputados eleitos pela MUD – Mesa de Unidade Democrática – foram empossados. Isso assegura à oposição a maioria qualificada de 2/3 dos votos, mas segue sub judice a posse dos três deputados do estado do Amazonas (Julio Igarza, Nirma Guarulla e o indígena Romeo Guzamana) devido à sentença do Tribunal Supremo de Justiça – TSJ – que suspendeu temporariamente as respectivas investiduras por supostas irregularidades na votação que os elegeu.
Agora, Diosdado Cabello, ex-presidente da Assembleia promete, com apoio do PSUV, o partido do oficialismo, tornar ilegais todas as decisões que vierem a ser tomadas pela oposição por estarem desobedecendo a Constituição e uma medida judicial, mesmo sabendo que a intervenção do Judiciário foi feita por encomenda do Executivo, não tendo base legal efetiva.
Enquanto isso, o novo presidente do legislativo, Ramos Allup, ordenou a retirada do prédio das imagens do presidente Nicolás Maduro, do ex Hugo Chávez e do que considerou serem reproduções falsas (mimeográficas) de Simón Bolívar. “No quiero ver ni a Chávez ni a Maduro, llévense toda esa vaina” (não quero ver nem a C. nem a M., levem embora toda essa droga) gritou Allup, acrescentando que a única exceção passa a ser o retrato clássico de Bolívar. Sugeriu que os inúmeros quadros, cartazes e banners distribuídos por toda parte fossem entregues à viúva (de Chávez) ou jogadas no lixo.
Irados, os chavistas retomaram as imagens e por ordem do atual prefeito do município Libertador no centro da capital, Jorge Rodríguez, montaram uma exposição das mesmas na praça Bolívar, a poucos metros do prédio onde funciona a Assembleia. Pelo sistema político-administrativo venezuelano os “municípios” caraquenhos correspondem às subprefeituras das grandes cidades brasileiras, mas dotados de maior autonomia. Rodríguez discursou pedindo que “esses alimentadores do ódio e da morte não se metam com nossos amores, que são sagrados”.
É nesse clima carnavalesco e rasteiro que 2016 começa assistindo as disputas entre o chavismo e seus cada vez mais numerosos e influentes adversários. É evidente que a retirada dos banners e cartazes de um edifício, por mais icônica que seja a medida, constitui uma provocação desnecessária que, afinal, não passa de um desaforo sem muito sentido prático. Allup com sua atitude bombástica traz à lembrança dos venezuelanos os destemperos de Pedro Carmona que o levaram a perder o poder em apenas 47 horas após o golpe militar que conseguiu em abril de 2002 nada menos nada mais do que praticar a façanha (depois se soube que nunca mais seria viável) de expulsar Hugo Chávez do poder, impedindo-o de se tornar o “ditador legal” do país. Então, após três dias de greves e do povo nas ruas, os militares instalaram na presidência a Carmona, líder da Fedecámaras (a Confederação Nacional das Indústrias, CNI de lá) que, ao assumir a presidência dissolveu o Parlamento e o TSJ, deletou as costumeiras Leis Habilitantes que tudo permitiam a Chávez e no embalo derrogou os convênios que transferiam fortunas do petróleo a Cuba, provocando uma reação popular que de imediato inviabilizou seu breve governo.
Agora há diferenças fundamentais com os fatos de quase quatorze anos atrás. As principais são a vitória oposicionista nas recentes eleições legislativas de 6 de dezembro, a derrubada internacional dos preços do barril de petróleo e o intenso desprestigio popular da administração desastrosa de Nicolás Maduro com níveis recorde de inflação e de desabastecimento de produtos no comércio.
Nos últimos anos o judiciário tornou-se um mero apêndice de Miraflores, o palácio presidencial situado no final da Avenida Urdaneta em pleno centro da capital, de onde partem todas as leis e comandos que determinam o que pode e o que não pode ser feito em toda a Venezuela. O TSJ ainda se considera forte ao ponto de querer impor suas vontades ao desejo de mudança expressado pelos eleitores, e se refugia em detalhes normativos e burocráticos para anular a maioria de 2/3 do total de 167 deputados surpreendentemente construída pela MUD, a sigla que em princípio agrega todas as oposições. A intervenção é cirúrgica e sem um pingo de pejo, pois está pinçando apenas três deputados (o estritamente necessário para reduzir os 112 deputados “dos outros” aos 109 exigidos por Maduro) do mais remoto estado da federação – o Amazonas – em cujas selvas, parecem raciocinar os magistrados, ninguém sabe o que se passa.
À medida que o tempo passa, novas ameaças toldam os horizontes oposicionistas, com o surgimento de rachaduras potenciais ou reais entre os mandachuvas de suas dezoito tendências que estão sempre prontos a engalfinhar-se pelos despojos do regime chavista que, na verdade, nada deixa de construtivo para a sociedade venezuelana. A ameaça de que as tensões se transformem em conflito armado permanece como uma forte possibilidade diante de uma turma do deixa-disso cada vez mais inexistente. Todos, à direita e à esquerda, sonham com a volta dos altos preços del crudo (petróleo), a riqueza única e inextinguível dessa grande&pequena Venezuela.
Vitor Gomes Pinto
Escritor. Analista internacional