No campinho de terra batida na altura do número 1.800 da Estrada do Iguatemi, na Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo, os amigos Samuel Bezerra Lima e Nicholas Rhyan Moreira, de 11 e 13 anos, reproduzem o gol de Richarlison diante da Sérvia. É mais do que um voleio. Especialistas dizem que a Copa cria heróis reais, que podem ser alcançados e copiados, com trajetórias parecidas às das crianças das periferias.

Nesse campinho da Cidade Tiradentes dá para jogar descalço sem machucar o pé. A terra aparece na área central; as laterais têm mato rasteiro (ou nem tão rasteiro assim). Fazer o gol do Pombo era o desafio do domingo nas peladas das crianças da comunidade do Beco da Tia. Não é jogada fácil, é preciso tirar os pés do chão na hora exata e girar o corpo. Tentativa e erro. É a plasticidade que compensa a dor do contato do bumbum com o chão.

Samuel faz dupla com Nicholas nas imitações. Eles não jogam juntos, no mesmo time, para manter o equilíbrio da disputa. As fotos comprovam que os dois reproduzem igualzinho o gol da Copa. “No Brasil, o futebol transforma pessoas comuns em referências. As crianças projetam nessa figura algo que elas gostariam de ser. Esses heróis têm trajetórias parecidas com elas e acabam se tornando heróis possíveis”, explica o professor Gerson Leite de Moraes, do curso de Pós-graduação em Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Na cabeça do Samuel, o caminho para ser ídolo ainda é nublado. “Quero ser jogador, mas não sei como fazer.” Por isso, o campinho é uma de suas vitrines. A outra é a escolinha de futebol do Grêmio Recreativo Santa Adélia, onde atua ao lado de 80 meninos dos 10 aos 17 anos. O técnico Daniel Lima Silva está entusiasmado. “Ele tem habilidade, joga com e sem a bola, mas precisa continuar nessa pegada.”

Os pais – o motoboy José Raimundo Silva Lima e a auxiliar de limpeza Patrícia Alves – apostam que a carreira vai deslanchar. Futebol é a saída em uma realidade carente.

REFERÊNCIA ARGENTINA
A Copa também inspira meninos e meninas de outras regiões. Em Guarulhos, na Grande São Paulo, um grupo do Jardim Santa Clara brincava de fazer um gol com um chute colocado. Arthur Pereira Lima, de 12 anos, dá o exemplo do gol de Messi diante do México, no cantinho. Não era força, era jeito. Ali não havia nem traves; os gols foram feitos com chinelos. Os colegas perguntam por que Arthur falou de um jogador que não é brasileiro. “Porque ele é bom”, simplifica, sabiamente.

Existem outros sinais de imitação, Copa lá, Copa aqui. Na hora do gol, Samuel celebra como já fez Neymar, colocando a língua para fora; Nicholas prefere o salto de Cristiano Ronaldo. Imitar é uma tentativa de fazer parte da Copa, como explica o professor José Carlos Marques, coordenador do Grupo de Estudos em Comunicação Esportiva e Futebol da Unesp. “Eventos globais geram identificação, como se as pessoas também fossem estrelas da Copa. As pessoas mimetizam o comportamento do ídolo por pertencimento”, avalia.

No Complexo do Campo de Marte, zona norte, onde se realizam cerca de 100 jogos nos finais de semana, a influência da Copa também se mede pelos golaços e jogadas de efeito. Aqui, o tom é mais crítico em relação ao maior torneio da modalidade mais importante do mundo.

“A Copa não trouxe nenhuma novidade no jogo em si, apenas algumas poucas jogadas de destaque”, opina Otacílio Ribeiro, membro da Sociedade dos Clubes Mantenedores do Complexo Esportivo de Lazer e Cidadania do Campo de Marte.

O atleta amador Luís Antônio de Araújo, que jogou os últimos 25 anos (tem 45) no campo Cruz da Esperança, um dos seis do Campo de Marte, vai mais longe. “Queria mesmo que algum desses ricos jogadores nos ajudasse na várzea”, cobra.