O primeiro batom do mundo. O primeiro perfume moderno. Uma escova de dentes giratória. O creme e o sérum originais da Nivea. Sem falar nos segredos íntimos da rainha Elizabeth II. Esses são alguns dos tesouros guardados no primeiro arquivo da Guerlain, que traz de volta à vida histórias do passado sensacional da icônica empresa francesa de cosméticos.

A Guerlain deu à Associated Press acesso exclusivo de imprensa internacional à coleção recém-inaugurada, um armazém de maravilhas envolto em segredos e escondido dos olhares públicos pelo rio Sena, em Paris. É um tesouro de documentos e objetos misteriosos que abrange três séculos, cada um deles com uma história única.

No entanto, talvez o que haja de mais notável na coleção é o fato de que a empresa fundada em 1828, que inventou a perfumaria moderna, ainda não a tivesse reunido.

“É o que chamamos de nosso segredinho”, diz a diretora de patrimônio da Guerlain, Ann Caroline Prazan, que vasculhou uma mina de artefatos para organizá-los em um amoroso trabalho de vários anos. “Foi difícil reduzir 18.000 peças a apenas 400 de tantos anos, mas conseguimos (…) Algumas delas são tão frágeis, que tenho medo de tocar.”

O ambicioso projeto existe graças à paixão de Prazan – e à sua paciência. Em meio a uma névoa de perfume, ela exibe vinhetas sobre as inovações e os clientes famosos da Guerlain, como a imperatriz francesa Eugenie, Josephine Baker, Grace Kelly, Jacqueline Kennedy, Barbra Streisand, Margaret Thatcher e a falecida rainha do Reino Unido.

Ao se virar para manusear o objeto mais valioso da coleção, um batom criado em 1870 e armazenado em um invólucro dourado de aparência contemporânea, Prazan tirou cuidadosamente suas luvas brancas, como se estivesse realizando um ritual sagrado.

?É tão moderno”, sussurrou, seu dedo operando cuidadosamente um mecanismo de elevação para revelar um pigmento de cera bordô escuro, ainda intacto depois de 153 anos.

O batom recarregável tem uma história marcante, como aparentemente quase tudo no arquivo. Um funcionário de Aimé e Gabriel Guerlain estava andando pela rua e se deparou com a loja de um fabricante de velas, cuja cera e pigmentos coloridos lhe causaram um momento de inspiração.

Na época, as mulheres usavam potes de pó colorido para pintar os lábios com um pincel desajeitado. Ao ver as ferramentas do fabricante de velas, o funcionário da Guerlain teve a ideia “louca” de criar um cosmético labial de cera, como um bastão, conta Prazan.

“Aquele pequeno objeto revolucionou para sempre a maquiagem feminina”, diz.

Prazan também adquiriu o primeiro delineador de lábios do mundo, também em uma elegante embalagem dourada, e um terceiro bastão – que um jornalista da AP não conseguiu identificar. No fim das contas, era um delineador usado pelas mulheres para pintar as veias do braço e do pescoço de azul, uma técnica popular usada pelas mulheres no final do século XIX em Paris para parecerem mais brancas. Felizmente, diz Prazan, ele saiu de moda.

Que a Guerlain seja uma empresa familiar transmitida ao longo de cinco gerações sucessivas é talvez uma das razões pelas quais essas peças de arquivo tenham sido mantidas com tanto cuidado. A empresa foi comprada pelo conglomerado de luxo LVMH em 1994, mas conseguiu manter sua identidade única.

A inovação, inclusive para além da esfera do perfume, é a característica da marca. Entre os tesouros do arquivo está a patente para a primeira escova de dentes giratória. Documentos revelaram um projeto de 1845 que parecia um precursor para as atuais escovas de dentes elétricas.

Um pote de creme hidratante chamado Nivea, tirado de uma gaveta, conta outra história que une passado e presente. O creme, que continha ingredientes para clarear a pele das mulheres europeias, foi vendido pela casa para criar a famosa empresa de cuidados com a pele de mesmo nome.

Há ainda o velho frasco de Jicky, o primeiro perfume moderno. Criado em 1889, ele revolucionou o mercado com o conceito de um coquetel aromático – não apenas uma nota, como as fragrâncias anteriores – que trazia notas de especiarias, limão, lavanda, madeira e baunilha. Ele também incluía ingredientes sintéticos, e é, incrivelmente, o perfume mais antigo em produção contínua no mundo.

Mas são as anedotas das estrelas da empresa que trazem mais encantamento a uma coleção que parece tão viva, apesar de sua longa história.

Prazan conta que a rainha Elizabeth II, vista em uma foto na parede usando uma glamourosa estola de pele branca, era tão fã do perfume L’Heure Bleue, da Guerlain, que esvaziou uma garrafa e a encheu com óleo da sua coroação de 1952. Ela foi guardada por anos, tal era o apego emocional da falecida monarca ao aroma.

Em outra prateleira do arquivo, um frasco de um perfume diferente trazia um brilho fascinante. Era a fragrância criada para o batismo do tio da rainha, anos antes de se tornar o rei Edward VII – e notoriamente abdicar do trono por amor. A coleção às vezes parece uma linha do tempo encapsulada dos principais momentos de figuras históricas mundiais.

Embora o arquivo seja um assunto secreto, a marca criou uma exposição aberta ao público para o 170° aniversário de seu design mais famoso, o Frasco Abelha. A exposição, chamada “Chère Eugénie” (Querida Eugénie), pode ser vista na loja da Guerlain na Champs-Élysées até 4 de setembro.

Lá, o Frasco Abelha original – um artefato histórico – está em exibição como uma joia da coroa, com luz refletida sobre os relevos de abelha pintados à mão. Ele foi criado em 1853 para as núpcias da imperatriz Eugénie com Napoleão III.

A abelha era o emblema imperial francês, e também o emblema de Clovis, primeiro rei dos francos. Ela passou a representar a Guerlain até os dias de hoje.

Para o aniversário, 11 artistas e atores internacionais, como Charlotte Rampling e Audrey Tautou, criaram uma série de fotografias inspiradas no Frasco Abelha.

Um pé no passado com olhos no futuro parece ser a definição da Guerlain, um mantra que a longevidade obrigou a empresa a aperfeiçoar.

“Eu planejo bem no futuro, tranquilamente daqui a 100 anos”, observou Prazan, enquanto guardava seus objetos de quase 200 anos. “Sei que a casa ainda estará por aí até lá, muito depois que partirmos. Quantas pessoas podem dizer isso?”