“Tenho uma pena do Tom Jobim. Como pessoa, era excelente. Mas tinha um equívoco fundamental. O Tom achava que compunha música brasileira.” “Não acho nada disso que o senhor falou. […] Tom é um grande compositor, reverenciado por Alfredo da Rocha Vianna Filho… O Pixinguinha.” Tinhorão provocou, e Hermínio não deixou barato.

Um arranca-rabo amigável entre titãs da música nacional fizeram da mesa “Música, Doce Música”, neste domingo (5), um daqueles momentos que, em alguns anos, podem definir a 13ª Festa Literária Internacional de Paraty: “Aquela Flip não foi a da polêmica do Tom?”. Não foi a única. O debate entre Hermínio Bello de Carvalho, 80, e José Ramos Tinhorão, 87, ainda jogou na berlinda a sexualidade de Mário de Andrade e um suposto malogro da música popular brasileira no exterior.

O mediador, Luiz Fernando Vianna, editor no site do Instituto Moreira Salles, iniciou o bate-papo dando as credenciais dos convidados. Formado em direito, Tinhorão “achou cafona o anel de rubi falso”, brincou Vianna, e logo partiu para o jornalismo. Com 27 livros publicados, virou referência na pesquisa musical.

Na Flip, lança nova edição de “O Samba Agora Vai A Farsa da Música Popular no Exterior” (Editora 34), de 1969. Hermínio, parceiro em sambas com Cartola (“Alvorada”), Pixinguinha (“Fala Baixinho”) e Baden Powell (“Valha-me Deus”), “o cara que descobriu a Clementina de Jesus e empurrou o bancário Paulinho da Viola para a música”, é outro gigante a estudar o cancioneiro nacional. Ele relança, pela Edições de Janeiro, “Taberna da Glória e Outras Glórias”, reunião de textos sobre grandes nomes da música que passaram pelo lendário restaurante, onde Mário de Andrade, Aracy de Almeida e Noel Rosa tomavam a cerveja Cascatinha.

O material foi selecionado pelo escritor e colunista da Folha Ruy Castro. Não deixar o samba morrer, não deixar o samba acabar, de alguma forma, parece desejo de ambos. Eles só discordam de como o gênero tradicional evoluiu na nossa música. Já é notória a fúria de Tinhorão contra parte do nosso legado musical. “Como eu achava que bossa nova na realidade era o jazz pasteurizado, o pessoal caiu em cima de mim. Levei muita pancada por sustentar essa tese.”

Para o octagenário, é como se o ritmo emulasse Carmen Miranda na música “Disseram que Eu Voltei Americanizada”. Bossa seria coisa da nova geração da classe média carioca que foi morar em Copacabana. O bairro não tinha “antecedentes culturais”, afirmou. Por isso, todo jovem de lá “usava camiseta com frases em inglês e mocassim sem meia pra ser moderno na época da bossa nova”.

Outro hit eram os óculos escuros Ray-Ban, com um estojinho que penduravam no cinto, outra moda importada dos Estados Unidos. “Achava isso tudo uma falsidade” Fora que tom seria o “sr. Monotonia”, segundo Tinhorão, que desconfiou da semelhança das melodias de “Mr. Monotony” (música de Irving Berlin famosa na voz de Judy Garland) e “Samba de uma Nota Só”. O dedo no gatilho continuou. “Todos esses bossa novistas eram todos caindo aos pedaços. Eu que sou mais velho tô mais inteiro que eles.” A única coisa que presta no gênero, segundo Tinhorão, é a batida do violão de João Gilberto. “Era um ritmo tão desencontrado que Moreira da Silva chamava o samba do João de ritmo de goteira.” Hermínio saiu em defesa da bossa nova. “É samba, sim, é brasileiro, sim.”

SOM AO REDOR A discussão só perdeu o ritmo quando Tinhorão, sem conseguir escutar direito o que os companheiros do palco diziam, reclamou do som. O curador da Flip, Paulo Werneck, comunicou que providências seriam tomadas. “Estou fazendo uma força danada pra te ouvir”, disse a Hermínio, que devolveu: “E eu estou fazendo uma força danada pra te provocar!”.

Embora faiscante, a conversa nunca perdeu aquele tom apaixonante, mas cordial, de dois amigos que discutem se preferem Flamengo ou Fluminense, Chico Buarque ou Caetano Veloso, o chope do bar Lagoa ou do bar Luiz. Em outro ponto alto da mesa, Hermínio criticou o escarcéu em torno da correspondência na qual Mário de Andrade menciona sua “tão falada homossexualidade”. “Fizeram tanto sobre essa carta, e ela não diz nada. Foi um sensacionalismo à toa. O Mário de Andrade era sabidamente confuso sexualmente.”

O homenageado desta Flip é fonte de inspiração para Hermínio, que chegou a peitar Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) no passado. Ele teria feito pouco caso quando o pesquisador propôs celebrar os 90 anos do autor de “Pauliceia Desvairada”. “Alguém está interessado no Mário?” Hoje muitos estão. Mas nem todas as questões devem ser aprofundadas, ou correm o risco de ficarem “rasteiras, rasas”, disse o pesquisador.

Como saber quem Mário levava para a cama. “Ele dizia que fazia sexo com as árvores, um sexo meio pan”, afirmou, lembrando da amiga Aracy de Almeida (1914-1988), principal intérprete de Noel Rosa, jurada no programa de calouros do Silvio Santos e presente em altas rodas da malandragem e do high society carioca. “A Aracy falava abertamente:’Olha, eu gosto de tudo. De homem, de mulher, de cachorro… Aliás, prefiro cachorro.”