MARCELO TOLEDO, ENVIADO ESPECIAL BARRETOS, SP (FOLHAPRESS) – Araçatuba, década de 1930. Após deixar Mato Grosso do Sul, a comitiva de Edemundo Martins Moura chega ao interior paulista, em mais uma longa viagem com boiada no estradão. O comissário gostou do que viu e fincou raízes em Icém, mais de 200 quilômetros distante.

Passado todo esse tempo, as tralhas usadas por Moura estão preservadas e são cuidadas por Carlos Batista Martins Moura, 54, seu filho, que todos os anos vai até Barretos (SP) para manter a histórica tradição familiar e se sentir mais perto de seu pai, que morreu há sete anos.

As comitivas, responsáveis por conduzir a boiada em viagens que duravam até quatro meses no estradão, eram formadas pelo comissário (dono), ponteiro (conhecia o trajeto e ditava o ritmo do gado), rebatedores (cercavam o gado, para ele não se espalhar), culatras (fechavam o comboio) e culatras mancas (seguiam bois mais lentos ou que se feriram no caminho).

Além deles havia o cozinheiro, responsável por “queimar o alho” e que viajava antes do restante do grupo para encontrar um bom lugar para fazer as refeições da comitiva -normalmente, próximo a riachos, para poder lavar os utensílios.

Daí o nome do concurso da Queima do Alho na Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos, que busca reproduzir a melhor comida feita no estradão (carne de sol, paçoca de carne seca, feijão gordo e arroz carreteiro).

Os peões levavam o gado de uma propriedade rural a outra ou tinham como destino os frigoríficos. É o que fez a fama de Barretos no passado -a cidade abrigava o frigorífico Anglo- e contribuiu para o surgimento no município da Festa do Peão de Boiadeiro, em 1956.

“Faço questão de preservar a tralha dele. Retoquei algumas, reformei outras. Sinto que o progresso empurra a gente para trás, mas não vou mudar, vou segurar tudo que meu pai passou para mim”, disse Carlos, comissário do grupo composto por 12 pessoas, entre elas Fabricio, 24, seu filho e herdeiro na tradição familiar. Segundo ele, seu objetivo é mostrar de onde veio e não se permitir modificar o que viveu. “Barretos era muito forte nos anos 50, 60, era ponto de destino de muitas comitivas, era muito movimentada, até que o progresso atrapalhou.”

Por progresso, entenda-se a substituição das comitivas pelo transporte da boiada por caminhões até os frigoríficos. “As comitivas foram deixando de ser usadas. Com o caminhão, o boi não perdia peso na viagem, saía gordo da fazenda e chegava gordo ao frigorífico. Com as comitivas, saía gordo e chegava muito magro, precisava ganhar peso no pasto até ir para o matadouro”, afirmou João Paulo Martins, coordenador do concurso da Queima do Alho.

ORIGEM — Nos anos 50, era comum o encontro de comitivas oriundas de diversas partes do Brasil no entorno de Barretos. Para passar o tempo, resolveram fazer brincadeiras entre elas e disputavam quem tinha a melhor tralha, os objetos mais bonitos e quem fazia a melhor comida. Escolhiam como jurado algum comissário antigo, que dava prêmios como arreios, berrantes ou boas facas aos vencedores, obtidos com fazendeiros.

“Com a chegada da Festa do Peão, em 1956, essas comitivas começaram a fazer desfile típico, encostavam nas árvores perto do rodeio e faziam a disputa gastronômica entre elas dentro da festa, e não mais nos locais de antes”, disse Martins. Dessas, ao menos seis participam da Festa do Peão desde então e hoje são comandadas por filhos e netos de ex-comissários. Elas têm lugar cativo na disputa da melhor refeição e, a elas, somam-se outras 12 comitivas, escolhidas em seletivas. Embora sempre tenha preservado os materiais do pai, há apenas 15 anos o grupo de Carlos participa da disputa na Festa do Peão, após receber convite. A final será disputada no dia 26, no Parque do Peão.

“Sinto que meu pai ficaria muito feliz de nos ver. E parece que, no momento da disputa, não estamos sozinhos ali, sinto ele com a gente.” O caso da comitiva criada por Moura não é único. Há dezenas delas espalhadas por Estados como São Paulo, Paraná, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Goiás responsáveis por manter a tradição cultural e que participam de eventos típicos como a Festa do Peão de Barretos. Uma delas é a Anésio Garcia, da própria Barretos, formada por descendentes do comissário homônimo que viajava o país com boiadas. Um de seus filhos, Álvaro, mantém a tradição da culinária típica na família e já leva seu filho de 20 anos para que ele herde os conhecimentos do campo.

Os últimos relatos de viagens de comitivas até Barretos são dos anos 80. Ainda há grupos atuando em locais como o Pantanal, principalmente fazendo o transporte de gado de fazenda para fazenda. A Festa do Peão de Boiadeiro está em sua 62ª edição e será realizada até o próximo dia 27.