Franklin de Freitas – Seu Aramis e sua horta

No século XVII, o alemão Gottfried Wilhelm Leibniz ficou conhecido por sua filosofia do otimismo. Sinteticamente, ele defendia que, tendo sido o universo criado por Deus, viveríamos, então, no “melhor dos mundos possíveis”, onde seria possível conciliar o máximo de bem e o mínimo de mal. Tal visão de mundo, contudo, foi alvo de críticas diversas por outros pensadores, a principal delas escrita por Voltaire, naquela que é talvez a obra-prima do escritor francês. “Cândido, ou o otimismo”, é um conto filosófico em tom de sátira publicado pela primeira vez em 1759 e que conta a história de Cândido, um jovem que vive no castelo do barão de Thunder-ten-tronckh, localizado na Vestfália. Seu mestre é Pangloss, filósofo que ensina a “metafísico-teólogo-cosmolonigologia” e que professava, como Leibniz, que vivemos no melhor dos mundos possíveis.
Acontece, porém, que Cândido se envolve com Cunegundes, filha do barão e sua prima, e acaba expulso do castelo, dando adeus ao “melhor dos mundos possíveis”. O que se segue é uma série de desventuras mundo afora, que terminam com o protagonista se instalando numa fazenda em Constantinopla, onde acaba cultivando o seu jardim. Lá escuta de Pangloss uma breve dissertação sobre o perigo das grandezas, que todos os acontecimento estavam devidamente encadeados no melhor dos mundos possíveis e que todo o sofrimento acaba por reverter em benefícios. Cândido, então, candidamente responde ao seu mestre, numa frase que acabaria eternizada: “Tudo isso está bem dito… mas devemos cultivar nosso jardim.”
E em Curitiba, mais precisamente no bairro Abranches, há um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire. Ele se chama Serzedello Aramis Siqueira e, aos 89 anos (já se preparando para os 90, que serão celebrados em 29 de setembro), pode ser encontrado todas as manhãs na horta que fica num terreno em frente à sua residência, onde planta alface, couve, repolho, salsa, abacate e outras iguarias que a terra oferece.
“Toda a vida minha paixão foi horta. Eu nasci e me criei lá (em Marmeleiro, no sudoeste paranaense) e a gente lidava com horta, eu e a minha irmã. A horta era a distração nossa, porque lá é só mato. Eu gosto, faço isso por prazer. Não tem nada de dinheiro aqui e não quero dinheiro de ninguém. Alguém quer um pé de alface, vem aqui e corta, não me importo. Fiz aqui para passar o tempo livre”, conta Seu Aramis, como é conhecido.
Uma ou duas vezes por dia as vistosas plantações de Seu Aramis são regadas. Quando ele começou a horta, porém, eram poucos que acreditavam que naquele terreno, então repleto de cacos de telha e tijolo, fosse possível produzir algo. “O antigo dono dizia ‘Aramis, você vai plantar pedra, isso aqui não vai dar nada, é muita pedra’. Mas eu limpei isso tudo e foi muito bem, fica cheio de verdura quando é a época”.
Para seu Aramis, ‘está melhor do que bom’. “Tem gente que quer isso, quer aquilo… Eu não quero nada, só quero paz. De vez em quando vem três, quatro amigos, ficamos batendo um papo, tomando chimarrão. Aqui é meu cantinho de distração”, diz ele. “Estou fazendo porque gosto. Não quero nada de ninguém, não quero cobrar nada de ninguém. Na idade em que eu estou, a única coisa que se quer é um cemitério, né?”, brinca.

Desventuras em série: ‘Eu gosto da luta’

Se hoje dedica a maior parte de seu tempo ao cultivo da horta, por outro lado Seu Aramis teve de passar por ‘poucas e boas’ ao longo da vida, a exemplo do personagem Cândido, de Voltaire. “Trabalhei no Café do Paraná, fui o primeiro motorista deles e trabalhei a vida toda lá, até que a empresa derreteu. Fiquei desnorteado e aí larguei mão e fui fazer outras coisas”, relata.
Resolveu, então, usar as economias que tinha guardado em anos de trabalho para começar a fazer entregas. “Comprei três carros novos e comecei a fazer carreto. Depois, dei de presente os três carros, pode perguntar. Não cobrei um tostão. Minha mulher fica louca, ‘por que deu os carros para eles?”. Mas comigo é assim. Se começa a encher o saco, resolvo logo da minha maneira.
Hoje, vive com uma renda de aproximadamente R$ 3 mil por mês, dinheiro que recebe da aposentadoria. “Dá para viver. Não é vida de rico, mas dá para viver. Até hoje não sei o que eu fiz com os carros. Eu sei que eu dei, mas para quem eu dei, não lembro, até por conta da idade. Mas é que eu gosto, eu gosto da luta.”

Último desejo
Seu Aramis se orgulha do que construiu ao longo da vida. “Vim morar aqui quando aqui não existia nada. Eu comprei o terreno aqui e estou até hoje. Está tudo liquidado, tudo certinho. Gosto de fazer as coisas certas. Tem de pagar, você pague. Não deixa para amanhã, depois de amanhã, que é um troço chato”, afirma.
A sua cidade natal, contudo, ainda é o seu idílio. “Eu me criei no mato, sou caboclo. Nasci e cresci em Marmeleiro. Admiro e gosto demais daquela cidade”, diz ele. “Eu ainda quero ir para Marmeleiro, ficar pelo menos uns dois dias lá. Minha mulher fala que não tem mais ninguém lá, mas não me importo. Meu pai morreu em Marmeleiro, minha mãe morreu em Marmeleiro. E eu queria morrer em Marmeleiro. Eu gosto de lá. Quando eu cresci lá ninguém te incomodava, você fazia o que queria e era tudo gente boa.”