O ano é 2018. A sala está cheia de profissionais de diferentes especialidades. Há investidores, consultores, contadores, advogados e analistas. O objetivo é entender a viabilidade da aquisição de uma empresa. Entre análises profundas dos números da empresa, sua capacidade de gerar retorno para o investidor, desafios no seu setor, aspectos regulatórios e concorrenciais, surge a pergunta: É possível utilizar o ágio que será pago nessa aquisição? Esse benefício ainda existe?
A resposta deveria ser sim, é possível, ainda existe. No entanto, a vida não tem sido tão fácil. Em muitas operações, os tomadores de decisão têm decidido não usar o ágio. Operações envolvendo bilhões de reais têm simplesmente ignorado esse benefício fiscal “teórico”. As autoridades fiscais brasileiras conseguiram impor uma incerteza em algo que não deveria ser incerto. As vacilantes decisões dos tribunais administrativos também têm contribuído para gerar essa insegurança que permeia o mercado hoje.
O benefício fiscal decorrente do ágio foi estabelecido, ou talvez turbinado, quando da intenção de estimulo para as privatizações em meados dos anos 90. Para incentivar ou até incrementar os lances nos leilões, assegurou-se a possibilidade de redução do preço pago pela utilização do ágio gerado nessas aquisições. Para isso, a empresa adquirente precisaria incorporar a empresa adquirida.
O motivo dessa necessidade de incorporação é simples. O Brasil não possui uma regra de consolidação fiscal como ocorre em grande parte dos países desenvolvidos. Ou seja, se pudéssemos consolidar a apuração fiscal da empresa adquirente com a adquirida, não precisaríamos de incorporação formal. A incorporação é um animal criado para substituir um sistema mais inteligente e evoluído que não temos.
Aqui então devemos lembrar que nem sempre uma transação de aquisição é tão simples e nem toda transação permite uma incorporação direta de adquirente e adquirido. Temos transações envolvendo minoritários, com pagamento em ações, com necessidade de segregação de atividades, obrigações ou limitações regulatórias e dezenas de outros cenários que trazem alguma complexidade para que possa haver uma incorporação societária.
Após as mudanças na legislação contábil brasileira, que passaram a seguir o padrão internacional do IFRS, a legislação fiscal também teve que mudar. O benefício fiscal do ágio é mantido. Diferente, mas mantido.
Ocorre que, desde o início das mudanças contábeis, as autoridades fiscais passaram a questionar operações passadas com base nas novas regras. Como dizia o ministro Pedro Malan, no Brasil até o passado é incerto. Frase memorável que, para quem transita no mundo tributário, não poderia ser mais precisa.
Não apenas isso, um dos principais alvos das autuações da Receita Federal são as chamadas “empresas-veículo”. Diz o fisco que a adquirente não pode constituir uma empresa-veículo para fazer uma aquisição (e subsequente incorporação) porque o objetivo seria unicamente a utilização do benefício fiscal do ágio.
Essa é uma abordagem superficial e distante. Não é assim que deve ser. Deve-se analisar um assunto relevante como esse com a história, o objetivo e o que está escrito nas normas.
Se a necessidade de incorporação entre adquirente e adquirida decorre de uma falta de sofisticação de nosso sistema tributário, se não há a possibilidade de consolidação fiscal no Brasil – o que já deveríamos ter há muito tempo – não é razoável surgir uma discussão envolvendo, por exemplo, as empresas-veículo.
Estamos presenciando um momento de autuações fiscais seriais, muitas delas com multas agravadas de 150%, como se o mercado agisse em sua maioria com má-fé. Ninguém hoje consegue se basear na jurisprudência para tomar uma decisão. As decisões da Câmara Superior têm sido, em sua maioria esmagadora, negativas para os contribuintes.
Não é assim que se constrói um mercado saudável, com regras previsíveis e com o importantíssimo rule of law. O cenário atual é de hipocrisia fiscal. Isso precisa mudar.

Roberto Haddad é sócio da consultoria tributária da KPMG