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A hipótese de que os anticorpos gerados por uma infecção prévia por dengue teriam efeito protetor contra a Covid-19 surgiu no fim de setembro. Na época, o Brasil ultrapassava os 140 mil mortos pela Covid-19 e já pairava o temor sobre como o sistema de saúde responderia à chegada do verão, período crítico para a dengue — o número de casos notificados no ano superava 920 mil. Um quadro aparentemente menos pessimista do cenário brasileiro, em que as duas doenças virais estavam convivendo, foi apresentado no estudo “How super-spreader cities, highways, hospital bed availability, and dengue fever influenced the COVID-19 epidemic in Brazil”, publicado na base de pré-prints medRxiv.

A pesquisa coordenada pelo neurocientista Miguel Nicolelis relatou que os mapas da dengue e da covid-19, quando sobrepostos, indicaram complementaridade entre as incidências de dengue e de covid-19. Em outras palavras, a taxa de crescimento do contágio e da mortalidade por covid-19 eram menores nos estados onde é alto o percentual da população com anticorpos para a dengue. Foi a primeira indicação de que os anticorpos gerados durante o contágio por dengue poderiam ajudar a combater também a covid-19.

Essa sugestão inspirou outro estudo, publicado cinco meses depois, dessa vez com base em relatos de moradores de Rio Branco (Acre), região em que a dengue é endêmica, colhidos por um projeto da Universidade Federal do Acre (UFAC). O artigo “Previous dengue infection and mortality in COVID-19”, publicado na Clinical Infectious Diseases, sugere que a covid-19 é menos letal para quem teve dengue antes, apesar de às vezes provocar sintomas mais intensos. Com isso, a pesquisa traz aprofundamento para a compreensão da relação entre as doenças, que ainda exige reflexão cuidadosa.

“Primeiro, esse aparente efeito protetor é para quem já teve dengue no passado. Existem relatos de casos de pessoas que tiveram dengue e covid ao mesmo tempo e isso aumenta o risco de morte. Então não é para correr atrás do mosquito. O segundo ponto é que mesmo quem já teve dengue precisa continuar se cuidando, evitando pegar covid. Não é que pode relaxar medidas de prevenção”, explica o professor Miguel Morita, do Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Nesta entrevista, Morita fala sobre como a correlação entre dengue e covid-19 apareceu da análise do banco de dados e das principais constatações dos pesquisadores. “Esse estudo encaixa mais uma peça no quebra-cabeça”. 

Fale um pouco sobre o contexto em que foi feito o estudo.

Minha linha de pesquisa é na área de doenças cardiovasculares e de como epidemiologicamente elas podem ser enfrentadas. Eu e os demais autores do artigo fizemos mestrado em Saúde Pública [na Harvard School of Public Health] e tivemos um aprofundamento grande em epidemiologia e metodologia epidemiológica.

Vínhamos [refere-se aos autores do artigo] colaborando em trabalhos nessa linha, mas, diante da pandemia, como muitos pesquisadores, acabamos auxiliando na análise epidemiológica da covid.

Os cardiologistas assumiram um pouco isso no início porque a covid veio como uma doença que poderia atacar o coração. Hoje sabemos que não é tão frequente, mas continuamos envolvidos de alguma forma, porque a pandemia impacta muitas doenças.

O estudo concluiu que quem teve dengue antes teve menor risco de morte por covid-19, mas teria sentido mais fortemente os sintomas da doença causada pelo Sars-Cov-2. Como se explica essa aparente contradição?

O estudo foi realizado na região do Acre, a partir de um trabalho para ajudar no enfrentamento da pandemia, com alunos e liderado pelo professor Odilson [Silvestre, da UFAC, também autor do artigo]. Dentro desse projeto eles criaram um projeto de pesquisa em que fizeram um formulário de pesquisa incluindo perguntas sobre se teve ou não dengue. Estávamos trabalhando nesse banco de dados do Acre para olhar as doenças cardiovasculares, mas no desenvolvimento da pesquisa, percebemos que tínhamos que olhar para a relação com a dengue.

O estudo do professor Nicolelis foi um estudo “ecológico” [baseado em mapas, sem cruzamento de diagnósticos]. O nosso é mais consistente porque foi feita uma coorte [agrupamento estatístico] em que é possível individualizar cada pessoa, portanto com força de evidência maior. O que observamos que nos chamou a atenção — ainda não temos explicação definitiva para isso e acaba caindo na especulação, mas parece relevante — é a contradição de que quem teve dengue reportou mais sintomas do que quem não teve dengue, mas teve mortalidade menor.

“Pode ser — ainda não sabemos com certeza — que a pessoa que teve dengue pode ter tido uma resposta imune importante já na fase de replicação viral [do novo coronavírus], ajudando a eliminar o vírus”

Uma explicação para isso poderia ser o fato de que quem tem uma imunidade prévia tem uma reação mais rápida ao vírus. A gente sabe que o vírus da covid tem uma fase de replicação viral que gera uma resposta inflamatória mais tardia, dentro da cronologia de curto prazo. É essa resposta inflamatória que inflama os pulmões e leva à síndrome de angústia respiratória, o que acaba levando a óbito, com outras complicações. Então pode ser — ainda não sabemos com certeza — que a pessoa que teve dengue pode ter tido uma resposta imune importante já na fase de replicação viral [do novo coronavírus], ajudando a eliminar o vírus. Assim a doença não evoluiria para a fase tardia, evitando as complicações que causam morte.

Outra explicação para isso está nas limitações do estudo, já que ele se baseia em relatos. Uma delas é um comportamento chamado de “health sick behaviour”. É uma forma de viés de explicação que ocorreria, no caso em questão, quando a pessoa que já teve dengue se informou melhor, portanto sabia falar melhor de sintomas. Como procuraram diagnóstico de dengue, podem ter procurado de maneira mais adequada um diagnóstico de covid. Por outro lado, quem disse nunca ter tido dengue pode simplesmente não ter procurado diagnóstico.

Para o estudo, nós exploramos esse viés, buscando análises técnicas, com simulações de diferentes níveis de viés de informação para compreender quais conclusões superariam essas possibilidades. E ainda assim foi consistente a ideia de que a dengue prévia corresponde a menos mortalidade por covid. Isso também dá mais sentido à tese da resposta imunológica mais rápida.

A dengue e a covid-19 são causadas por vírus de famílias diferentes, com comportamentos totalmente diferentes de infecção. Uma doença precisa do mosquito como vetor, outra não, os graus de infecção também são diferentes, entre outras coisas. O que explicaria o anticorpo da dengue funcionar contra a covid-19?

Sim, comportamentos completamente diferentes. Os indícios que temos é de uma possível imunidade cruzada. Isso significa que um antígeno que desencadeia a resposta imune para a doença, em geral uma proteína que está na superfície do vírus, pode ser parecido na dengue e na covid. A especulação que se faz é que um anticorpo que foi direcionado para agir em relação ao vírus da dengue pode agir também na presença do vírus da covid.

Achados de publicações um pouco antes da nossa são referentes a isso. Tivemos resultados de falso positivo para covid em pessoas que tiveram dengue, ou seja, publicações mostraram que houve testes sorológicos que deram positivo para covid-19 em período antes da pandemia, em pessoas que tinham anticorpos para dengue. Isso corrobora a tese de imunidade cruzada.

Também houve um relato de caso em Cingapura de paciente que teve quadro sugestivo de dengue, com dores musculares e quedas de plaquetas sanguíneas, que acontecem com a dengue, e pouco depois outro teste mostrou que na verdade ele tinha covid-19. Pode ser coincidência desse último caso, mas são então alguns indícios ainda indiretos de imunidade cruzada.

Avalia que essas possíveis correlações ajudam de alguma forma a saber se poderia haver uma vacina para ambas as doenças?

Fizemos um comentário sobre isso no artigo. Existe uma vacina contra a dengue chamada Dengvaxia [desenvolvida pelo laboratório francês Sanofi-Aventi desde 2013 e registrada no Brasil em 2019]. O problema com a vacina da dengue é que, depois que você contrai a doença pela primeira vez, existe o risco de o segundo contágio ser mais grave. Como são quatro tipos de dengue, ou quatro sorotipos de dengue, você não pega a mesma dengue duas vezes e a segunda vez acarreta mais risco de desenvolvimento da dengue hemorrágica, que é a forma mais grave da doença, a que mais causa mortes. A questão é que se acredita que a vacina contra a dengue acabou agindo como se fosse uma prima infecção. Por isso ela acabou não indo muito para frente, por causa do risco de que causasse uma forma mais grave da doença. Poderia piorar a situação.

Não sei dizer se é possível criar uma vacina para duas doenças. Podemos apenas especular sobre indícios disso, se depois que tivermos uma parte considerável da população vacinada contra a covid os casos de dengue cairão, por exemplo.

Como se poderia confirmar se a dengue e a covid-19 têm algum antígeno em comum?

Seria preciso uma pesquisa de bancada, experimental, que faça uma comparação de anticorpos desenvolvidos para as duas doenças que ajude a confirmar a tese da infecção cruzada. O importante do nosso estudo é mostrar o resultado de uma colaboração, que começa com as universidades participantes e que pode passar da área clínica, na qual atuamos, para a experimental.

É o que chamamos de pesquisa translacional, que é a pesquisa feita em colaboração entre diversas áreas. Esse é o caminho para o qual devemos ir.

Considerando os mapas da dengue e da covid-19 no Brasil, existe algo no cenário das duas doenças que sugira que a endemia de dengue pode ter colateralmente impedido mal maior na pandemia de covid?

Entramos no campo da especulação. Pode ser que as áreas tenham sido protegidas pelo fato de ter muita gente com dengue prévia, mas isso não pode ser afirmado por esse estudo. O que temos chamado a atenção é para a mensagem clínica do nosso estudo: parece haver um efeito protetor [contra a covid] sobre quem já teve dengue. Mas, primeiro, é para quem já teve dengue no passado. Existem relatos de casos de pessoas que tiveram dengue e covid ao mesmo tempo e isso aumenta o risco de morte. Então não é para correr atrás do mosquito.

O segundo ponto é que mesmo quem já teve dengue precisa continuar se cuidando, evitando pegar covid. Não é que pode relaxar medidas de prevenção.

“Esse estudo encaixa mais uma peça no quebra-cabeça, ajuda a entender quem tem predisposição à covid grave ao mostrar que talvez infecções prévias, algumas imunidades, podem ajudar a proteger”

Em resumo, o estudo pode ajudar a explicar algumas heterogeneidades da covid. Um dos grandes problemas da covid é que não sabemos, primeiro, quem pega e, segundo, quem tem maior predisposição de desenvolver a forma grave. A gente sabe que a predisposição atinge mais quem tem doença cardiovascular e diabete, mas também sabemos que gente jovem, sem esses problemas, também evolui em direção a um quadro grave.

Então esse estudo encaixa mais uma peça no quebra-cabeça, ajuda a entender isso ao mostrar que talvez infecções prévias, algumas imunidades, podem ajudar a proteger. Uma hipótese que se cogita sobre por que as crianças não têm tanta covid grave é que elas têm infecções virais recorrentes, contato com vírus do resfriado, portanto teriam um sistema imunológico mais forte.

Então a mensagem clínica do estudo é que existe uma hipótese assim para a dengue e que pode ser confirmado mais à frente. Nossa intenção foi transmitir isso para a comunidade científica para que possamos avançar.