SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Encerrado o período de inscrição das chapas presidenciais da Argentina à 0h deste domingo (23), as três mais competitivas possuem, entre os seis candidatos a presidente e a vice, cinco peronistas. Apenas o atual mandatário, Mauricio Macri, que busca a reeleição, não segue essa corrente ideológica.


Os demais, embora peronistas, estão longe de pensar da mesma forma. Dividem-se entre as diversas ramificações desse complicado conceito, que confunde até mesmo os próprios argentinos.


O primeiro turno das eleições ocorre em 27 de outubro, quando se renovará, também, parte do Congresso.


As três principais chapas são: Mauricio Macri e Miguel Ángel Pichetto, pela coalizão Juntos por el Cambio (governista); Alberto Fernández e Cristina Kirchner, pela Frente de Todos; e Roberto Lavagna e Juan Manuel Urtubey, pela aliança Consenso Federal.


O que distingue os peronistas envolvidos nessa disputa? Pichetto e Fernández são peronistas clássicos, que se adaptam ao governante de turno (desde que este seja peronista). Ambos já foram leais ao peronismo neoliberal de Carlos Menem (1989-1999) e ao de esquerda dos Kirchners (2003-2015). Apenas Alberto rompeu, ironicamente, com a sua atual companheira de chapa, Cristina, após ter sido chefe de gabinete dela ao fim do primeiro ano de gestão.


Para o historiador italiano Loris Zanatta, professor de história da América Latina na Universidade de Bolonha e especialista em Argentina, “se todas as chapas presidenciais contêm peronistas, pode-se passar a ideia de que o peronismo ganhou”. “Mas também cabe outra interpretação, a de que a definição clara do que é o peronismo está se apagando.”


Sempre houve vários peronistas nas disputas presidenciais. Em 2015, havia três (Daniel Scioli, Sergio Massa e Rodríguez Saá); na de 2003, uma das mais polêmicas por conta da desistência do primeiro colocado, outros três (Carlos Menem, Néstor Kirchner e Rodríguez Saá). Qual a diferença nos dias de hoje?


Para Zanatta, é a falta de fricção e de identidade clara. “Chegar dividido na eleição não é novidade para o peronismo. Porém, antes, as diferenças eram mais claras. Néstor era uma opção à esquerda de Menem, que era neoliberal, e havia disputas ferrenhas entre eles.”


Além disso, havia partidos de oposição fortes e competitivos, como a hoje apagada União Cívica Radical, que apenas se limita a compor a base da coalizão de Macri.


Mas quando surgiram as diferenças entre os distintos tipos de peronismo? Historiadores não chegam a um consenso, e o assunto rende debates calorosos.


Porém, em linhas gerais, pode-se dizer que nasceu com o casal Juan Domingo Perón (1895-1974) e Eva Perón (1919-1952). Ele teria idealizado um sistema em que as prioridades seriam a soberania nacional, a justiça social e a independência econômica. Em suas gestões, o general cunhou um estilo paternalista, típico dos caudilhos, com mão de ferro em suas decisões.


Governou a Argentina em três períodos, de 1946 a 1952, de 1952 a 1955 (quando foi derrubado por um golpe militar) e de 1973 a 1974, ano em que morreu. Durante seu longo exílio na Europa, entre o segundo e o terceiro mandato, aproximou-se do ideário de Mussolini (1883-1945), a quem passou a admirar.


Seu perfil autoritário foi ficando mais marcado. Por isso, causou grande desilusão, ao voltar, na guerrilha marxista montoneros, pois esta acreditava que ele construiria uma Argentina socialista. Porém, Perón estava muito longe dessas ideias e rompeu com os montoneros, preferindo aproximar-se de um ramo do peronismo mais à direita, ligado ao sindicalismo.


Outra vertente foi a cultivada por sua mulher, Eva Perón. Em sua curta vida, interrompida aos 33 anos por um câncer, Evita foi uma militante engajada, de discursos radicais e incendiários. Não economizava a voz ao gritar contra os ricos e a oligarquia em seus discursos, e pregava certo ódio classista, algo que impregnou a esquerda peronista.


Do peronismo de Evita surgiram o peronismo de esquerda, como o kirchnerismo, e aquele ligado ao trabalho dos chamados “curas villeros”, ou padres que atuam nas favelas –ambiente do qual saiu o próprio papa Francisco.


Desde o começo, também houve uma distinção entre peronismo urbano –ligado à guerrilha nos anos 1970 e ao kirchnerismo nos dias de hoje, e o peronismo mais tradicional, que existe nas províncias. Esse peronismo federal se aliou a Macri em 2015, com vários governadores que lhe deram apoio, em discordância com o kirchnerismo.


Hoje, essa ala é representada por Juan Manuel Urtubey, atual governador de Salta, que, apesar de se definir como de centro-esquerda (é a favor da legalização do aborto), é muito mais conservador que o peronista urbano e, antes de mais nada, busca uma maior autonomia das províncias com relação a Buenos Aires, principalmente em questões de orçamento nacional.


Mas quem criou um grande cisma no peronismo foi o ultrapopular Carlos Menem, que inaugurou uma ramificação nada convencional.


Apesar de reforçar o patriotismo à sua maneira, pediu uma grande conciliação nacional, oferecendo indultos a repressores e guerrilheiros presos. Em outra frente, promoveu privatizações em larga escala. Foi um peronista neoliberal, que ganhou setores do empresariado, mas inquietou o peronismo de esquerda.


Indagado sobre o que é o peronismo hoje, o analista Rosendo Fraga crê que não se trata de uma discussão ideológica. “Se o poder está à direita ou à esquerda, não interessa. O peronismo ocupa todos os espaços que pode.”


Para o cientista político Marcos Novaro, Miguel Ángel Pichetto foi chamado por Macri para amenizar o que causa resistência em relação a ele, que é o vínculo com os ajustes econômicos. Por outro lado, Cristina teria chamado Alberto Fernández para “minimizar o medo que ela causa em não peronistas e mesmo em peronistas moderados.”


Tanto que, questionado na semana passada sobre sua ideologia, Fernández disse ser um “peronista progressista liberal”. Assim, talvez, esteja inaugurando uma nova vertente desse amplo conceito.