Franklin de Freitas/arquivo Bem Paraná

O reitor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Ricardo Marcelo Fonseca classificou como “produto de uma leitura míope sobre prioridades nacionais, sobre o papel das universidades e sobre a sua racionalidade pública” a  Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 206/2019, que  propõe cobrar mensalidade em universidades públicas. A ideia é que as instituições usem os recursos captados para dívidas de custeio, como água e luz, e que a gratuidade seja mantida para alunos que não tenham condições socioeconômicas de arcar com os custos. O valor mensal seria definido pelo Ministério da Educação (MEC). A PEC estava na pauta da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ), da Câmara dos Deputados, desta terça-feira (24). Mas, segundo o relator , o deputado federal Kim Kataguiri (União Brasil-SP), deve ser adiada para a semana que vem.

No Twitter, o reitor disse ainda que a discussão das mensalidades encobre o real problema: “A contínua, dramática e cruel diminuição do financiamento público das universidades nos últimos anos. Tematizar cobrança dos estudantes parece cortina de fumaça para esconder essa nua realidade. Do orçamento de 2016 até o de 2022 os valores para financiar o nosso dia a dia (o dito orçamento discricionário) diminuíram nominalmente em mais de R$ 2,7 bilhões. Se inserirmos o IPCA do período, o corte de recursos é de 52,5%. Opção cruel que deixou de apostar no futuro”. 

De acordo com ele, a cobrança não resolveria o problema. “Se os 30% dos 1,2 milhão de alunos do sistema (os que estão acima da renda de 1,5 salário mínimo) hoje pagassem em todos os cursos R$ 1.000,00 mensais, e com zero de inadimplência, teríamos  R$4,3 bilhões anuais a mais. É muito pouco em termos de orçamento. Seria valor um tanto maior que o orçamento anual da UFRJ. E hoje temos mais de 70 federais”, afirmou Fonseca, no Twitter. “Pra quem acha que o valor de R$ 4,3 bilhões em termos de orçamento seja alto, é importante lembrar que o chamado ‘orçamento secreto’ de 2022 chegou a R$ 17 bilhões. E que orçamento geral da união foi de R$ 4,7 trilhões”, completou.

O reitor da UFPR afirmou ainda que a procura pelo ensino superior está numa baixa dramática: “Os números do ENEM e dos vestibulares em todo o Brasil mostram isso. As mensalidades ajudariam neste problema?  Parece óbvio que a resposta é NÃO. Ao contrário: havendo razões econômicas por detrás da redução da demanda (e que triste que é as pessoas deixarem de estudar para poderem sobreviver) isso desmantelaria e aprofundaria a crise do sistema. Seria má política pública”.

Ele ainda citou que a cobrança de mensalidade em universidades públicas  iria contra o pacto constitucional de 1988 e contra o projeto de nação ali construído. “Como uma medida assim deve ser precedida por um debate nacional qualificado, que não pode ser açodado”, afirmou.

Tramitação

O CCJ ainda precisa avaliar a admissibilidade da proposta. Ou seja, se a PEC não viola as cláusulas pétreas da Constituição. Caso seja admitida, tem mérito analisado por uma comissão especial, que pode alterar a proposta original – com prazo de 40 sessões para votação. Só então ela vai ao plenário da Casa Legislativa. Por ser uma PEC, a aprovação depende dos votos favoráveis de 3/5 dos deputados (308), em dois turnos. Após a aprovação em uma Casa, é enviada para a outra, neste caso, o Senado. Se aprovada, é promulgada na forma de emenda constitucional – se houver modificação substancial, não só na redação, ela volta à Casa de origem.

Autor da proposta, o deputado federal General Peternelli (União Brasil -SP) justifica a mudança no artigo 206 da Constituição com base no relatório Um ajuste justo – propostas para aumentar eficiência e equidade do gasto público no Brasil, elaborado pelo Banco Mundial em 2017. O estudo da entidade diz que o gasto brasileiro com estudantes do ensino superior público é “muito superior” ao de países como a Espanha e a Itália, por exemplo.

Peternelli, que está entre os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, escreveu que a “maioria dos estudantes dessas universidades acaba sendo oriunda de escolas particulares e poderiam pagar a mensalidade”. “Não seria correto que toda a sociedade financie o estudo de jovens de classes mais altas.” A PEC é relatada pelo deputado Kim Kataguiri (União Brasil-SP).

“A gratuidade generalizada, que não considera a renda, gera distorções gravíssimas, fazendo com que os estudantes ricos – que obviamente tiveram uma formação mais sólida na educação básica – ocupem as vagas disponíveis no vestibular em detrimento da população mais carente, justamente a que mais precisa da formação superior, para mudar sua história de vida”, continua a justificativa.

Nesta segunda-feira, 23, o Estadão mostrou que os Institutos Villas Bôas, Sagres e Federalista apresentaram o seu Projeto de Nação, O Brasil em 2035. O documento, dentre outros pontos, prevê que a classe média deve pagar mensalidades nas universidades públicas

Na última década, a implementação das cotas socioeconômicas e raciais levou para as universidades alunos de perfil socioeconômico mais vulnerável. Pesquisa da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), de 2018, indica que 70,2% dos alunos estão na faixa de renda mensal familiar per capita de 1,5 salário mínimo. Alunos que cursaram ensino médio em escolas públicas foram maioria absoluta (64,7%) – os que cursaram em particulares representaram 35,3%.

Nas redes sociais, entidades como a União Nacional dos Estudantes (UNE) e Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG) criticaram a proposta. “Nós não vamos pagar nada! Uma educação pública, gratuita e de qualidade é direito assegurado pela nossa Constituição!”, escreveu a UNE nas redes sociais.

Também pelas redes sociais, a líder do PSOL na Câmara, a deputada Sâmia Bomfim (SP) rebateu o argumento que embasa a PEC. “Contra as mentiras daqueles que querem destruir a universidade pública e gratuita, espalhe a verdade: maioria dos estudantes das universidades federais é de baixa renda! #PEC206Não”, escreveu a parlamentar, no Twitter.

Relator da proposta, Kataguiri considera a repercursão da PEC “excelente”. “Quanto mais debatido for esse projeto, melhor. Mesmo porque ainda tem 40 reuniões de comissão especial se for aprovado”, disse o deputado ao Estadão/Broadcast, sistema de notícias em tempo real do Grupo Estado. Afirmou também que ainda precisa sentir o clima do plenário para saber se o projeto pode avançar mesmo em ano eleitoral.