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Imbróglio de um século em Curitiba pode render condenação ao Brasil na OEA (Foto: Michelle Stival da Rocha/CMC)

O conflito histórico em torno da Vila Domitila, em Curitiba, ultrapassou as fronteiras brasileiras e pode chegar nas mãos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA).

O caso envolve um terreno de 191.480 m² localizado entre os bairros Ahú e Cabral, atrás da antiga penitenciária do Ahú, e arrasta-se há mais de um século em meio a disputas judiciais, acusações de fraude, decretos municipais e denúncias de falta de imparcialidade da Justiça.

Segundo o advogado André Perroud, representante da Associação dos Moradores do Ahú e Cabral, o Ministério Público Federal (MPF) e a Justiça Federal não agiram de forma neutra ao longo do processo. Ele afirma ter reunido mais de 10 mil páginas de documentos que comprovam que, desde 2006, reuniões foram realizadas entre o INSS, o TRF4 e a própria Justiça Federal para dividir os terrenos da Vila Domitila.

“Eles participavam não como instituições da Justiça, mas como instituições interessadas em adquirir imóveis da Vila Domitila”, disse Perroud em entrevista ao Bem Paraná.

Diante dessa situação, o advogado levou o caso à CIDH. “Então, o nosso envio da denúncia é justamente porque a Justiça não vai fazer diferença nenhuma a gente esperar até o último recurso. Porque a gente já sabe o resultado final. A gente já sabe que ela é parcial hoje. Nós precisamos evitar que isso aconteça. Então, resolvemos levar essa denúncia para a comissão”, explicou.

Via de regra, só é possível levar uma denúncia à Comissão Interamericana quando todos os recursos no país de origem já foram esgotados. A exceção pode ocorrer quando há interesse direto da própria Justiça no caso ou quando existe uma lacuna legislativa que impede qualquer solução interna. Essas duas circunstâncias se aplicam à Vila Domitila.

A denúncia foi enviada ao Governo Brasileiro em 24 de setembro, que agora tem até três meses para apresentar resposta.

Moradores receberam ordens de despejo

Atualmente, cerca de dez famílias continuam vivendo na Vila Domitila. Em 2016, 250 famílias residiam no local. A maioria não recebeu qualquer indenização. A Justiça Federal aplicou um marco temporal com base no Decreto Municipal nº 520/1994, assinado pelo então prefeito Rafael Greca, que reconheceu a posse do INSS sobre a área.

“Quem adquiriu imóveis após esse decreto não tem direito a indenização. Já quem entrou antes, tinha direito, mas apenas aos valores dos imóveis da época, com correção simples”, afirmou o advogado.

Com o passar do tempo, famílias que viviam há 20 ou 30 anos no local receberam ordens de despejo. As decisões judiciais favoreceram o INSS, que reivindica a posse do terreno.

Disputa histórica

A história da Vila Domitila é marcada por controvérsias desde sua origem. Em 1920, o então governador Caetano Munhoz da Rocha leiloou uma área de 300 mil m² por 15 contos de réis para um parente por afinidade. Três anos depois, recomprou o mesmo terreno pelo mesmo valor, levantando suspeitas de triangulação.

Em 1927, Munhoz da Rocha registrou a planta da Vila Domitila, com 191,4 mil m² divididos em 308 lotes, batizada em homenagem à sua esposa falecida. Em 1944, parte da área foi vendida ao Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários (IAPC), antecessor do INSS. Como os registros eram feitos com base em referências imprecisas, sobreposições geraram conflitos que se estendem até hoje.

Uma CPI instaurada na Câmara de Curitiba em 2016 confirmou inconsistências nas plantas. Já três perícias judiciais chegaram a conclusões divergentes, e uma quarta chegou a ser descartada pela Justiça. Nenhuma delas conseguiu definir com precisão os limites do terreno.

A partir dos anos 1940, inúmeras famílias compraram lotes na região ou ocuparam a área. O impasse ganhou novos contornos nos anos 1990, quando o então prefeito Rafael Greca assinou o decreto nº 520/1994. O ato substituiu a planta de 1927 e confirmou a versão defendida pelo INSS, reforçando sua posse sobre a Vila Domitila.

Com base nesse decreto, o INSS iniciou ações judiciais em massa contra as famílias, muitas delas consideradas “invasoras” pela Justiça. Algumas receberam indenização apenas pelas benfeitorias erguidas até 1995, enquanto outras tiveram de deixar o local sem qualquer compensação.

Terrenos da Vila Domitila são alvo de cobiça

Hoje, a Vila Domitila apresenta um cenário de terrenos baldios, mato alto e placas indicando a posse do INSS, do MPF ou da Justiça Federal. Muitas ruas foram fechadas, casas demolidas e quadras transformadas em terrenos maiores.

Enquanto isso, o bairro Ahú se valorizou significativamente, principalmente após o fechamento do presídio e a instalação de prédios públicos, entre eles o da própria Justiça Federal.