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Joca – Foto: João Fantazzini/Instagram

  Por *Frederico E. Z. Glitz

 Há alguns dias,  estamos sendo bombardeados pela mídia com as tristes imagens do cãozinho Joca desfalecido em uma gaiola. A notícia é acompanhada da explicação de que se trata do resultado fatal do descumprimento de um contrato de transporte aéreo. Para muitos de nós, contudo, é bem mais que isso. É o resumo da perda de um membro da família. Exagero? Não acredito.

Joca era um cão Golden Retriever de quatro anos. A expectativa de vida dessa raça de cães é de, aproximadamente, 10 anos. Ele, então, já seria um adulto, alcançando sua meia idade. Se a ele perguntássemos, provavelmente nos diria que seu tutor era seu pai, já que estudos indicam que os cães nos enxergam como líderes de sua matilha.

Aliás, os cães são nossos companheiros nesta jornada pela Terra  há pelo menos 15 mil anos. São o exemplo mais antigo de animal doméstico conhecido. Há vestígios arqueológicos, inclusive, de práticas funerárias de seus restos. A raça de Joca, em especial, é fruto de uma série de cruzamentos e seleção genética que resultaram em um cão inteligente e dócil. Fato é que nós, humanos, os fizemos assim.

Talvez por isso mesmo é que insistamos em encará-los, os cães e outros animais domésticos, como coisas e sujeitá-los a regimes de posse e propriedade. São os semoventes, no juridiquês que neutralizam o sentimento. Curiosamente, a palavra “animal” aparece uma única vez no Código Civil brasileiro, para definir a responsabilidade objetiva de seu dono ou detentor (art. 936).

A legislação brasileira, diga-se, vem sendo transformada por notícias como estas. Nada fácil, aliás, em um país carente de tudo, inclusive de empatia e respeito aos direitos humanos. Mas, ainda assim, já criminalizamos os maus tratos e as condutas cruéis; assim como exigimos a garantia constitucional de sua vedação; disciplinamos o seu uso científico e criamos uma política pública de controle de natalidade de cães e gatos e de manejo de animais de granja.

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Frederico E. Z. Glitz – Foto; arquivo pessoal

Isso tudo é suficiente? Provavelmente, não. Isso porque persistimos na matriz patrimonial. Razão pela qual tem se intensificado o debate em torno da existência de um “Direito Animal” e a revisão do status legal dos animais como bens. Passo importante é o anteprojeto de reforma do Código Civil recentemente apresentado ao Senado Federal. Nele se reconhece o cuidado e proteção “dos animais que compõem o entorno sociofamiliar da pessoa” como expressão de afetividade, conceito extremamente importante para o Direito de Família brasileiro. Além disso, consagra-os como seres “vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial”.

A essa altura do Século XXI, parece óbvio reconhecê-los como seres vivos dignos de proteção especial. A questão toda, contudo, é que alteração do Código Civil seria apenas um dos primeiros passos e seus desdobramentos muitos, em diferentes áreas.

E como isso tudo se liga ao Joca? Bem, atualmente o transporte de animais de estimação e assistência emocional, ao contrário do cão guia (Decreto n° 5.904/2006), é uma opção das companhias aéreas (art. 3º da Portaria ANAC n° 12.307/2023). O cão, em razão de suas características (como porte, por exemplo), pode vir a ser transportado na cabine ou no porão de cargas, o que exige uma série de cuidados para que ele não sufoque ou congele.

A questão, contudo, é que as condições deste transporte e as medidas para que o animal não sofra ou que lhe seja dado um mínimo de conforto não estão dispostos naquela Portaria; nem as companhias costumam informar de forma clara, prévia e ostensiva. A legislação se resume a tratar o tema do despacho (separado) e mencionar (art. 11) que nos casos de dano ao animal, o tratamento seria o mesmo dado ao extravio e perda de bagagem. (Resolução ANAC n° 400/2016). Para se ter ideia da inadequação, em caso de extravio de bagagem, a companhia aérea deve restituir a bagagem em até sete dias para voos nacionais (art. 32, §2º) e, em caso de dano, caso o item seja “frágil” pode até mesmo se recusar a indenizar, nos termos do contrato de transporte (art. 34).

Não se cogita, é claro, que a companhia aérea opere voos exclusivos para os animais (tal como se anunciou 

recentemente nos EUA, serviço oferecido pela Bark), mas que, para além de uma relação de consumo e transporte de “bagagem”, lembremos que estão sendo transportados seres vivos, importantes para alguém.

 *Frederico E. Z. Glitz é advogado, professor de Direito Civil da UFPR, doutor em Direito e tutor.