Ainda existe muita desinformação e enorme preconceito na sociedade em relação ao autismo. Assim, abrimos espaço para o protagonismo e convidamos Fernanda Santana, liderança do segmento, para falar um pouco sobre essa realidade.

O objetivo é marcar o Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo, data estabelecida pela Organização das Nações Unidas em 2007 e como data nacional pela Lei Federal nº 13.652 de 2018. O tema desse ano no Brasil é “Mais Informação, Menos Preconceito”, então aproveitem!

Vias Abertas: Sobre o preconceito, quais são as principais barreiras enfrentadas atualmente pelas pessoas com autismo?

Fernanda Santana: As barreiras atitudinais são as mais profundas, mais normalizadas e também as mais difíceis de remover. Isso vale pras pessoas autistas assim como vale pra qualquer outra pessoa com deficiência. Nos afeta no modo como olham pra gente, como tratam a gente, como nos barram no acesso a oportunidades. Pessoas autistas são frequentemente infantilizadas. Isso pega ainda muito mais forte em quem é autista e precisa de mais apoio no dia a dia, quem tem também deficiência intelectual e quem tem demandas mais complexas de comunicação – como quem não fala, seja a pessoa usuária de comunicação alternativa ou não. E essa infantilização não é só no modo de abordar a gente, mas se extende de forma muito significativa pra restrição de autonomia, negação de direitos. Nós sabemos que a lei vale pra todas as pessoas, que todos são iguais perante a lei, mas na prática uma grande parcela da população autista ainda é privada de exercer direitos muito fundamentais, como acesso à educação inclusiva, direito a opinião, direito a escolher onde viver (afinal a institucionalização ainda é um problema no Brasil), direitos sexuais e reprodutivos… embora todos tenhamos os Direitos formais, no senso comum ainda é bastante normalizado que isso não vale pra todo mundo, não de verdade. Essa distinção entre quem é, entre aspas, “funcional”, e quem não é, isso vem de muito tempo, e é muito difícil de desconstruir. Quando a gente não está dentro do estereótipo que as pessoas tem do que seja o autismo, acabamos encontrando muitas dificuldades pra conseguir adaptações razoáveis e apoio, e isso muitas vezes impede nossa permanencia e participação em igualdade de condições com as demais pessoas. Eu já deixei de fazer muitas coisas por falta de acesso a adaptações simples, mas que por mais simples que sejam, pra mim são importantes, fazem toda a diferença. Por outro lado, quando estamos dentro do estereótipo, aí é muito pior, aí nem entrar a gente entra. Hoje tem se falado muito sobre autismo, e isso é sensacional. As coisas estão sim ficando mais fáceis do que costumavam ser. Mas os resultados e inclusão social não chegam ao mesmo tempo pra todo mundo.

Vias Abertas: Você, mulher com autismo, de que maneira o capacitismo impacta na sua vida? Você percebe uma diferença de gênero?

Fernanda Santana: Com certeza. Antigamente, quando eu comecei a participar do Movimento, fazer parte da comunidade, ter contato com outras pessoas autistas, era bem menos comum encontrar uma mulher que se identificasse como autista. O acesso ao diagnóstico sempre foi muito diferente pra homens e mulheres. Por muito tempo, o autismo foi estudado exclusivamente em homens e meninos, é mais fácil desse jeito, então os resultados saíram enviesados. E aí se criou um mito de que o autismo era uma coisa muito mais masculina, que eram raras as mulheres. Isso dificultou muito, e dificulta até hoje, o acesso ao diagnóstico. Eu perdi a conta de quantas vezes fui desacreditada quanto ao meu autismo pelo simples fato de ser mulher.

Hoje, no Brasil, a avaliação da deficiência ainda é médica, e se você não tem um laudo médico na mão, não consegue se tornar elegível pra serviços e políticas afirmativas, mas ainda mais fundamentalmente, você não acessa informação. Informação básica sobre você. Hoje as informações estão começando a ficar mais democráticas, e talvez um dia a gente possa dizer que as relações não são mais essas, mas por enquanto é o seguinte: o capacitismo existe e você está sujeita a ele, se você sabe que você é autista, se você consegue se entender como pessoa com deficiência, você consegue também criar mecanismos de defesa. Se você é autista e não sabe, o capacitismo ainda vai existir… você ainda vai estar sujeita à mesma discriminação, às mesmas barreiras, mas sem nenhuma estratégia, sem apoio e sem defesa nenhuma. É muito comum a pessoa adoecer, porque a gente está inserido numa sociedade muito violenta, então depressão, ansiedade e várias outras condições de saúde mental vem como uma consequencia muito forte. Não tenho como não relacionar isso tudo com gênero, porque o acesso ao diagnóstico está melhorando, mas ainda não é equiparável, ainda temos um longo caminho pela frente. Eu mesma demorei bem mais do que devia pra ter acesso ao meu diagnóstico, e eu lido com as consequencias disso até hoje.

Claro que as questões de gênero não param aí. A sobrecarga que as mulheres sofrem ao serem encarregadas do cuidado das crianças e de outros familiares, ao mesmo tempo das tarefas de casa, além do trabalho, o peso que isso tem pra uma mulher autista é bastante diferente do que tem pra uma mulher sem deficiência. Meninas e mulheres autistas são um alvo bastante comum de violência, inclusive sexual, e é um medo que a grande maioria das mulheres autistas carrega o tempo todo. A negação de direitos sexuais e reprodutivos é bastante comum. Hoje em dia, aqui no Brasil, a esterilização forçada foi quase que completamente substituída por um outro problema que, embora não seja permanente, ainda é uma violação de direitos e pode ter consequencias bastante graves: os contraceptivos forçados, geralmente implantes hormonais ou pilulas de uso contínuo, as quais as meninas são submetidas já desde o início da puberdade. Embora essas não sejam questões com as quais eu, pessoalmente, tenha que lidar, não escapo de periodicamente ser questionada sobre meu interesse em ter filhos: sempre tem alguém pra me perguntar se eu não sei que o autismo é genético e pode passar pra uma criança, se eu acho que sou mesmo capaz de criar uma criança, e outras coisas relacionadas que eu estou completamente certa de que não perguntariam pra um homem autista.

Vias Abertas: Em relação às políticas públicas, quais são as principais pautas do movimento de pessoas com autismo?

Fernanda Santana: Temos falado muito sobre Educação Inclusiva e acesso à Universidade, Direito ao Trabalho, exercício da autonomia, Direito à opinião e comunicação, incluindo através do uso de Comunicação Alternativa e Aumentativa, a importância do protagonismo e do Nada Sobre Nós Sem Nós, e questões de ética relacionadas aos tratamentos de saúde, e aí chegamos na discussão de um ponto de equilíbrio entre o Direito à habilitação e reabilitação e o Direito à negar um tratamento que você não queira, ou que viole outros direitos, como o Direito a identidade, por exemplo.

Existem questões e comportamentos que são reconhecidos pelas outras pessoas como autísticos, e que muitas vezes são julgados como negativos porque fogem do padrão, justamente porque nos identificam como pessoas com deficiência. Falamos muito que o autismo é uma deficiência invisível, mas nem sempre ele é. Existem comportamentos pelos quais a gente é reconhecido como autista. Como o balançar, por exemplo. Que é algo positivo pra gente, que ajuda a gente a se regular, mas que é podado durante certos tipos de intervenção de saúde, classificado como comportamento indesejado. Mas indesejado não por nós, e sim pelos outros. É capacitista, em essência, querer transformar uma pessoa naquilo que ela não é. Então existe essa discussão, de até onde vai a habilitação e reabilitação com o propósito de garantir ferramentas pra independência e autonomia, e onde começa aquilo que é simplesmente… capacitismo. Nesse exemplo que eu dei essa questão de ética fica muito evidente, mas existem situações em que é mais difícil de você dizer. Hoje o autismo está muito visado como um mercado, um campo de trabalho para profissionais. Tem algumas coisas que eu vejo à venda, ou sendo propagandeadas, que eu paro e penso, nossa, mas a gente realmente virou um produto. Não somos nem o público alvo de um produto, não, a gente é uma ferramenta pra outras pessoas ganharem dinheiro, e frequentemente isso passa do razoável. Então temos algumas áreas cinzentas que não sabemos ainda onde vai dar, mas que nos preocupam de maneira geral, porque estão atreladas a discursos bastante capacitistas.

Vias Abertas: E quais foram os avanços? Tivemos avanços?

Fernanda Santana: Tivemos muitos avanços. A maioria deles são avanços enquanto pessoas com deficiência: garantia de matrícula na escola regular, acesso à Universidade e ao Mercado de Trabalho através de cotas, a Convenção e a LBI… Mas tem algumas coisas que são bem próprias do Autismo mesmo, e aí eu enfatizaria o acesso à informação, porque realmente deu um salto nos últimos anos. O diagnóstico de adultos está ficando mais comum e está mudando a vida de muita gente. Mais acesso a serviços de Saúde Mental. Muito mais gente autista tendo a possibilidade de discutir o Autismo e também chegando à Universidade e tendo a chance de produzir conteúdo técnico e científico sobre o Autismo a partir de uma perspectiva completamente nova.

Vias Abertas: Por fim, de acordo com o tema desse ano, indique para os leitores boas fontes de informação sobre o autismo na internet, nas redes sociais. Por exemplo, tem algum perfil no Instagram de um ativista ou um canal no Youtube?

Fernanda Santana: Hoje em dia temos muita gente bacana produzindo conteúdo de qualidade sobre autismo nas redes. Primeiro, não posso deixar de indicar as redes da Abraça, associação da qual eu faço parte: https://www.facebook.com/AUTISMO.BR, https://www.instagram.com/abraca.autismo/ e https://twitter.com/BrasilAbraca.

Além da gente, deixo mais três perfis bem legais no Instagram: A Alice Neurodiversa (https://www.instagram.com/alice_neurodiversa/), o Hey Autista (https://www.instagram.com/heyautista/) e o Mundo Autista (https://www.instagram.com/mundo.autista/).

Fernanda Santana é servidora pública do Tribunal Regional do Trabalho do Paraná – TRT/PR, estudante de Arquitetura e Urbanismo na Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR e secretária-geral da Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas – Abraça.

Quero agradecer minha amiga pela rica contribuição… papo reto, direto ao ponto. Que os leitores e as leitoras aproveitem, reflitam e passem a colaborar com nossa luta contra o capacitismo.

Protagonismo, representatividade, e reconhecimento sempre. NADA SOBRE NÓS, SEM NÓS.