A pergunta de Pilatos a Cristo atravessou dois milênios sem resposta, é evidente que o Nazareno tinha maiores preocupações naquele momento do que entrar em discussões filosóficas sobre o conceito de verdade, necessariamente contextualizada e vista à luz do pensamento e sofismas romanos.  

A verdade cristã era simples e cristalina antes dos teólogos e “doutores da igreja” a envolverem em complexidades na busca de entender, ou obscurecer, seu significado. Havia nela um conjunto de ideias que permeiam, ou deveriam permear, a ética pública ou privada dos tempos da “era comum”. E por serem simples não são de fácil compreensão ou reação; “ama teu próximo como a ti mesmo”, nisso está toda a base do que deveriam ser os princípios de convívio social ou familiar, ver no outro a própria imagem e respeitá-la implica em respeitar o outro e a si mesmo.

O governador romano desejava, além de propor uma armadilha retórica, uma definição absoluta de um conceito que raramente é absoluto. As verdades são relativas, por exemplo as restrições alimentares e outras de uma religião são totalmente respeitáveis em seu contexto e não encontram eco nenhum em outro, e isso se aplica a uma infinidade de questões que envolvem hábitos e costumes diversos. O limite deveria estar no ser humano, em seu direito à vida, à liberdade e à busca do bem estar. Algo difícil em ambientes cada vez mais agressivos e desonestos.

A relatividade das verdades descambou na tentativa de exercer controle sobre elas, chegando em nossos tempos ao conceito de “narrativas”. Os fatos não importam, importa a sua versão, gênese disso talvez esteja num filme de John Ford, de 1962, “O homem que matou o facínora”, um cidadão teria matado um bandido que aterrorizava uma cidadezinha, foi homenageado, virou herói e acabou eleito senador; anos depois um jornalista descobre que na real não foi ele quem matou, então o dono do jornal decreta: “já que a versão é melhor que a verdade, publique a versão”. Fina flor de cinismo, presente em quase toda nossa melhor sociedade civil, política e militar.

Quando acontece um caso rumoroso de assassinato, roubo, agressão, sempre há um advogado medíocre afirmando sobre o processo “vou me manifestar nos autos e restabelecer a verdade dos fatos”. Nunca se discute a estupidez dessa expressão, a verdade dos fatos, há os fatos que são o que importaria, e a verdade dos fatos torna-se a narrativa criada para negar ou atenuar culpas e responsabilidades. Respeitado o direito de todo acusado ter uma defesa, esse povo exagera, começa-se por negar o crime, depois o envolvimento do acusado, em seguida procura-se culpar a vítima, após busca-se circunstancias atenuantes, por fim recorre-se da sentença por muito severa, afinal um pequeno assassinato a sangue frio não mereceria uma condenação a vinte anos, o réu era pai de família até matá-la e tem bons antecedentes.

Fatalidade. Uma ocorrência sobre a qual não se tem nenhum controle. Pelo menos era assim que se a definia; fatalidades seriam tempestades, secas prolongadas, terremotos, e suas consequências não poderiam ser imputadas às vítimas.

Fatalidade passou a ser justificativa para qualquer decorrência de irresponsabilidade; um cidadão dirige seu carro em alta velocidade em via pública, embriagado ou pior, e atinge outro carro matando seu ocupante. Deve haver toda uma banca de advogados jurando que isso se deveu a uma fatalidade, mero azar do rapaz, com certeza maior azar do morto e de seus familiares. Foi azar sim, o mesmo motorista deve ter dirigido desse modo outras vezes e nada aconteceu, e muitos outros motoristas também. Mas o fato é que avenidas das cidades não se prestam a dirigir a mais de cento e cinquenta quilômetros por hora, e a fatalidade foi provocada criminosamente. Em que pesem as narrativas criadas pela defesa.

A verdade vai assim se transformando em algo fluido, que se adapta às condições econômicas daquele que dela faz uso, dependente de um bom e caro advogado, e, principalmente, moldável às necessidades de momento, como líquido que toma o formato do recipiente que o contém.

Nada ser verdadeiro pode implicar em tudo ser falso, como a “pastora” de uma certa congregação religiosa que mata o marido, mas declara que divorciar-se “escandaliza a Deus”,  ou pessoas que declaram-se “homens de bem”, mas trucidam animais ou tem atitudes agressivamente xenófobas, já que se consideram melhores que os demais.

Aqueles que “criam bem os seus filhos”, e por isso eles jamais se casariam com pessoas de outras colorações de pele ou se tornariam “desviados da normalidade sexual”; que se julgam inimputáveis entretanto trocam bíblias por barra de ouro. Que consideram professores como meros catequizadores das políticas comunistas, seja lá o que entendem desta ideologia.

São tantas incongruências que até aqueles que ontem julgavam ter um razoável processo reflexivo e procuravam agir dentro de preceitos éticos, perderam a certeza de que o país atingirá um nível civilizacional adequado.