A profusão de cores em tom de fábula das chamadas da nova novela das 6 da Globo não denuncia o crédito depois estampado na tela. Mas Meu Pedacinho de Chão,  que estreou na semana passada, é, sim, uma história do bom contador de causos Benedito Ruy Barbosa, que volta a botar a mão na massa folhetinesca após cinco anos afastado do expediente. Ainda que não tenha sido, como diz, um “peso morto” na Globo nesse período, tendo acompanhado de perto o expediente das filhas nos remakes de Cabocla, Sinhá Moça e Paraíso, Ruy teve de sair de circulação em razão de um AVC e conta que chegou a ser dado como morto.

Para retomar as rédeas do trabalho, escolheu Meu Pedacinho de Chão, novela sua de 1971/72, em preto e branco, exibida pela TV Cultura e pela Globo, e pediu à direção da Globo que lhe dessem Luiz Fernando Carvalho para dirigir o set. Assim se refez o par responsável por duas das melhores produções do horário nobre, Renascer e O Rei do Gado. Embora se diga que novela é obra do autor, e não do diretor Meu Pedacinho se reinventa em uma concepção que remete mais ao universo de Carvalho (com aquela pinta de Hoje é Dia de Maria) do que ao de Ruy. O que une os dois é a prosódia caipira. “Tem uma hora que a gente não sabe o que veio do texto e o que veio da direção, somos uma coisa só”, atesta Carvalho.

Mas Ruy é cioso de seu texto e não nega. Dispensa colaboradores, admitindo apenas uma parceria com a filha Edilene e do neto, Marcos, para ajudá-lo na digitação, exercício que o AVC lhe tomou. A nova produção se passa em Santa Fé, qualquer lugar no tempo e no espaço do interior do Brasil, tendo Antonio Fagundes, Osmar Prado e Bruna Linzmeyer num enxuto elenco de 20 personagens. O autor conta-nos toda essa história, e muitas outras que não cabem nas linhas a seguir, num flat em Moema, na zona sul de São Paulo, onde recebeu o jornal O Estado de S.Paulo.

Você agora trabalha nesse flat?
Benedito Rui Barbosa – Eu moro mesmo em Sorocaba, no meu sítio, que eu adoro. Tenho tudo lá, poderia escrever lá, mas os médicos me falaram pra ficar aqui, de medo que me acontecesse alguma coisa. Eles disseram: ‘Ruy, se você estiver no sítio, você não chega aqui em tempo, ainda mais se estiver sozinho’, como fico muito.

Você diz que aborda o tema da reforma agrária em suas novela desde ‘Meu Pedacinho de Chão’. E aí está o assunto de novo.
Barbosa – Sempre. Eu tenho 34 novelas nas costas, não é brincadeira. Comecei pela Tupi e depois fui para a Excelsior, a escola de novelas. Vim do Teatro de Arena, meu diretor era o Augusto Boal. Comecei a trabalhar com novelas sem querer. Eu nasci dentro de um jornal. Meu avô fundou vários jornais por esse interior, meu pai fundou o jornal de Vera Cruz. Vim aprender mesmo no jornalismo. Fui revisor no Estado de S Paulo e comecei como jornalista na Última Hora, em esportes.

Quando voltou a trabalhar?
Barbosa — Agora.  Minhas filhas tocaram Cabocla e eu acompanhei tudo, depois foi Sinha Moça e Paraíso. Quer dizer, eu não era peso morto na Globo, mas agora eu comecei a achar que estava na hora de começar a trabalhar.

De arrumar encrenca?
Barbosa – (Risos) É, de arrumar uma encrenca. Aí eu lembrei do Meu Pedacinho de Chão porque na época a censura mexeu muito na novela e fui preso, sem nenhum motivo. Fizeram corte em 12 capítulos. Tinha um imbecil lá, chefe da censura, totalmente ignorante, que dizia: ‘olha aqui meu rapaz, eu já censurei William Shakespeare, por que não vou censurar Ruy Barbosa, ainda mais Benedito?’ Aí fui preso por desacato.

Implicaram com alguma questão agrária?
Barbosa —  Nada. Começou com uma censora que tinha casado com uma pessoa de Belo Horizonte e ela não conseguiu ficar lá nem levar o marido para Brasília. Então, tudo o que tinha a palavra ‘amor’ ela implicava.

Agora a novela ganha outra roupagem.
Barbosa — Ah, agora é outra coisa, não é remake, isso é importante e faço questão de dizer. Quando a Globo aprovou, pedi o Luiz Fernando. Ele sentou aí onde você está. E nós começamos a discutir. Eu falei: ‘nem vou reler o que escrevi na época. Vou manter o nome dos personagens e vou fazer o que a censura não me deixou fazer’. Ele vibrou. A gente é como irmãos, sempre nos demos muito bem.

Achei que vocês tivessem rompido depois de ‘Esperança’, quando você foi substituído no meio da novela. Mas soube que você foi pressionado a escrever naquele momento, quando não estava bem, para aproveitar o sucesso de ‘Terra Nostra’.
Barbosa —  Foi, não era a minha vez na escala de autores. Eles estavam loucos atrás de mais uma novela como Terra Nostra, vendeu muito no exterior. E dei um azar danado, porque perdi dois irmãos, quase seguidamente, e, durante a novela (Esperança), perdi minha mãe. Eu não conseguia mais escrever. Fumava quatro maços de cigarro por dia.

Mas você sempre escreveu sozinho. Por quê?
Barbosa —  Sempre, eu não consigo deixar que ninguém escreva, nem essa novela. Todos os capítulos fui eu que escrevi. Meu neto é quem digita. O que me sobrou desses problemas que eu tive, do AVC, foi que eu perdi a agilidade, não consigo mais ter a rapidez que eu tinha.

E por que você diz que não é um remake?
Barbosa — Porque é totalmente diferente. Vamos mexer em política. Durante a novela tem greve de médicos, gente morrendo na fila de hospital, que tá acontecendo barbaridade, tenho greve de professores, tenho um prefeito que tem consciência de que tá tudo errado e fala: ‘se eu fechasse essa câmara de vereadores, por exemplo, e usasse esse dinheiro aqui, não tinha ninguém chorando, porque eles não fazem nada’. Mas ele não pode fazer isso.

Como tem prefeito corrupto e vereador que vigia o executivo.
Barbosa — Mas eu ponho também isso aí. A briga da novela é exatamente quem vai ser o próximo prefeito, e chega um instante em que ninguém quer ser, porque cada um bota na cabeça os problemas que vai enfrentar, que começam no governo do estado e no governo federal. Essas coisas não deixavam falar na primeira versão. O melhor regime ainda é o democrático. Eu faço uma escola de adultos em que a professora vai ensinar aquelas pessoas a votar consciente, para poder cobrar.


ENSINAVA O QUE ERA VACINA E COMO FUNCIONAVA

Meu Pedacinho de Chão é considerada a primeira novela educativa de TV.  Por quê?
Barbosa —   É isso mesmo. Ensinava as pessoas o que era vacina e como funcionava. A Secretaria da Saúde me dava assessoria, eles me mandaram uma carta, na época, me agradecendo Na época, eles mandavam equipes vacinar o pessoal no interior e as pessoas perguntavam: ‘essa vacina é a da novela? Ah, então pode vacinar todo mundo’.

Suas novelas sempre têm também algum pacto com diabo ou um diabo na garrafa. E agora?
Barbosa — Isso existe, minha filha, você não acredita, mas existe (risos). Mas agora não tem diabo.

A gente relaciona as imagens mais ao universo do Luiz Fernando do que à sua obra. Você embarcou nesse conceito?
Barbosa —  Total, eu acredito totalmente. Isso acaba sendo uma soma. A gente não divide. Você vai ver a novela no ar. Podia ser tratado de outra forma, claro que podia. A novela nasceu em preto e branco. Agora é outra história, mas essa forma que ele deu é de um encantamento que a pessoa chega a ficar maluca. O Schroder (Carlos Henrique, diretor-geral da emissora) foi lá. Quando ele viu o que está gravado, ele falou: ‘É disso que a gente precisa!’. É como eu falo: Pedacinho de Chão ou vai ser um sucesso total ou vai ser um desastre desgraçado (risos). Eu acho que não vai ter meio termo. Eu tô de corpo e alma com o Luiz Fernando.