Nos anos 1980, a obra de Patrícia Galvão (1910-1962), a Pagu, estava praticamente desconhecida. Crítica literária, escritora, tradutora, quase nada de sua valiosa produção estava disponível até que o poeta e estudioso do Modernismo Augusto de Campos lançou, em 1982, Pagu: Vida — Obra, pela editora Brasiliense. Foi o suficiente para uma bem-vinda redescoberta. Agora, é a vez da Companhia das Letras lançar uma edição revista e ampliada, que inclui novos textos, dezenas de ilustrações e fotografias. Surge novamente o retrato multifacetado da autora de Parque Industrial, uma das poucas mulheres a se destacarem no Modernismo brasileiro. Sobre a nova edição, Campos respondeu às seguintes questões. Como explicar que Pagu expressou com tamanha percepção o que só se saberia teorizar 20 anos depois?

É realmente espantosa a lucidez com que Patrícia Galvão analisa os anseios de mudança da sociedade e da cultura modernas ao longo de sua vida madura. Mas ela deve muito a Oswald de Andrade e à revolução literária de 1922, à qual estreou, aos 18 anos, na Revista de Antropofagia, em sua fase mais radical, em 1929.

Repleta de atribulações, sua vida foi marcada indelevelmente pela perseguição política da ditadura de Getúlio Vargas. Esteve presa quatro anos e meio, como subversiva, foi humilhada e torturada e, por outro lado, expulsa do Partido Comunista, como dissidente trotskista e “degenerada sexual”. Foi comunista quando idealizava o comunismo. Trotskista e antistalinista, quando devia sê-lo e, desiludida das utopias políticas, continuou a lutar por ideias renovadoras no campo da cultura, e especialmente na literatura e no teatro, que foram o seu refúgio nas últimas décadas de vida. Jamais desistiu da vanguarda artística. A comunicação que fez ao Primeiro Congresso de Poesia, realizado em São Paulo, nos deixa perplexos pela sua lucidez e coragem. Repudia a geração de 45 e acusa Mário de Andrade de “traição” à causa modernista, devido ao seu demissionário Elegia de Abril, texto de abertura da revista Clima (1941), e retrata Oswald, de quem estava separada há muitos anos, “de facho em riste, como Trotski, em solilóquio com a revolução permanente”.

Como foi isso?
Augusto de Campos -— De fato, Oswald era o último moicano da renovação artística do Modernismo. O “mea-culpa” de Mário, com sua desistência, incitava “os chato-boys”, “funcionários tristes da sociologia”, como os chamava Oswald, a aliar-se aos poetas da Geração de 45, neoconservadores e antimodernistas. Por essa época, Antonio Candido saudava como “grande poeta” a Rossine Camargo Guarnieri, praticante de uma oratória poética de palanque. A conclusão da comunicação de Patrícia, que repudia as pretensões dos organizadores do Congresso é: “Só uma nova revolução artística pode substituir na história e na evolução da nossa sensibilidade e da nossa inteligência a revolução de 1922”. O futuro mostrou o quanto ela estava certa. Patrícia Galvão foi a nossa última “antropófaga” histórica em literatura. Nunca deixou barato. Denunciou o que via como oportunismo e vulgarização em Jorge Amado, quando este estava no auge do seu prestígio, e chegou a cobrar radicalidade e coerência do próprio Oswald, quando este baixou a guarda.

A linguagem direta de Parque Industrial é moderna até hoje por conta do modo direto com que Pagu escreveu.
Augusto de Campos — O livro é, como eu escrevi, certa vez, uma última pérola modernista engastada na pedreira do nascente romance social dos anos 30. Patrícia publicou-o aos 22 anos. Foi a sua estreia literária. Influenciado pela “prosa telegráfica” de Oswald de Andrade, então seu marido, havia ainda muito de modernista no seu estilo fragmentário, direto e conciso. Sua luta pela renovação do teatro ocorreu bem depois, nas últimas décadas de sua vida. Se tinha alguma coisa em comum com o romance, foi a nunca esmorecida reivindicação da vanguarda artística. Criticava severamente o teatro político-populista de Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri, Plínio Marcos e Vianninha. Lutava pelo teatro poético, de vanguarda. Os seus autores preferidos eram Ionesco, Beckett, Jean Tardieu, Lorca, Arrabal, Octavio Paz.

A Pagu que surge agora se encontra em uma melhor situação do ponto de vista de reconhecimento da obra que no início da década de 1980?
Augusto de Campos — Sim. Até que surgisse o meu livro, ninguém sabia nada sobre Pagu Era a caricatura de uma mulher espalhafatosa e sedutora, que havia acabado com o casamento de Oswald com Tarsila, ou de uma comunista doidivanas, presa na época do Getúlio por suas estripulias políticas. O livro mudou tudo. Na verdade, foram três edições nos anos 80, nos tempos áureos da Editora Brasiliense, e grande repercussão na época. Baseados em suas pesquisas, gestaram-se um longa-metragem e dois documentários, e vários livros sobre Patrícia. Sua contestação a Mário de Andrade, patrono da revista Clima, que tomou conta das universidades paulistas com Antonio Candido à frente, por certo obstruiu o reconhecimento de sua obra nos meios acadêmicos. Mesmo após o barulho do meu livro, só se referiram a Patrícia, por tabela, e por conta dos estudos sobre Oswald de Andrade, estes próprios, tardiamente assumidos nesses meios, quando a Poesia Concreta já reivindicava a importância da obra oswaldiana desde os manifestos de 1956. Naquela época, nem o Modernismo era estudado, e muito menos Oswald, devido às suas críticas a Mário de Andrade. De Oswald, contavam-se as piadas.

E os críticos?
Augusto de Campos — Os docentes literários das principais universidades ignoraram Pagu: Vida-Obra, que, no entanto, interessou profundamente a um brasilianista da Universidade de Yale, Kenneth David Jackson, o qual colaborou na tradução Parque Industrial para o inglês e publicou vários estudos sobre Patrícia, prometendo ainda a publicação completa de seus textos, dos quais dou alguns dos mais significativos exemplos em Pagu: Vida-Obra. Há, em preparo, uma tradução do livro para o francês. Sem dúvida, Patrícia é hoje muito mais conhecida, e espero que venha a ser ainda mais conhecida com a republicação deste livro, que não trata apenas da sua biografia, mas põe em evidência a sua obra literária e artística.

É possível explicar o esquecimento a que foi relegada a obra de Pagu pela ausência de mulheres no Modernismo?
Augusto de Campos — Ser mulher era, sem dúvida, um fator negativo para uma escritora na época de Pagu. Se isso é verdade em países mais civilizados, o que dizer do país do futebol, que assiste, único no mundo, com um sorriso, aos insultos de baixo calão dirigidos à sua presidente? (…) No caso de Patrícia, houve como circunstância agravante a sua vida tumultuada pelos muitos anos de prisão e pelo inevitável reflexo que isso teve em sua vida, e a consequente dispersão de seus escritos. Mas houve e ainda há, também, muita resistência dos meios acadêmicos para aceitar a sua produção não-ortodoxa e, principalmente, as suas posições em defesa da vanguarda artística, sempre vista com desconfiança, e sempre acolhida com décadas de atraso como ocorreu com Oswald, Sousândrade e a poesia concreta.

Como avaliar uma escrita na qual está implícito o desejo de mudar a sociedade?
Augusto de Campos — Patrícia não é autora de obras-primas ou completas. Sua obra é fragmentária – estilhaçada por sua vida dramática e traumática. Tentou o suicídio, ao sair da prisão. Sobreviveu com uma bala na cabeça. Voltou a tentar o suicídio no fim da vida. A compilação de seus textos quer dar uma ideia da importância de sua participação na cultura brasileira. Não resultará dela uma obra perfeita e impecável. São fulgurações de inteligência e sensibilidade, com um alento vital e uma coerência ética, raramente encontráveis, voltados para a defesa das vanguardas culturais. Mas não quero mitificá-la ou mistificá-la pela beleza exterior de sua figura ou pelos acontecimentos turbulentos de sua vida. Meu livro é uma antibiografia que traça os caminhos de Patrícia, menos pelos eventos que pelas intervenções literárias e artísticas, sob forma de colagens verbo visuais. Como eu disse em novo prefácio, Patrícia Galvão não é Clarice Lispector (escritora que ela admirava muito). É menos. E é mais.