Uma cidade com dois arranha-céus espelhados no meio do deserto, com trabalhadores robôs e onde tudo está a cinco minutos a pé de distância. Esse foi o projeto apresentado pelo príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohamed bin Salman para a cidade futurística de Neom. Mas a ideia está longe de ser inovadora. É comum entre regimes autoritários da África e da Ásia, onde nos últimos 20 anos mais de 150 projetos surgiram, porém com raros casos de sucesso.

Desde os anos 90, governos apresentaram projetos semelhantes ao saudita, com propostas de cidades inteligentes, tecnológicas, ecológicas, inclusivas e sustentáveis. A ideia é criar do zero uma cidade futurística, superando velhos problemas das metrópoles, como superpopulação, moradias inadequadas e desastres ambientais causados pelas mudanças climáticas.

Essa explosão de “novas Dubais” e “novos Vales do Silício” é comum em países com um perfil similar ao da Arábia Saudita. Nações minúsculas como o Kuwait chegam a ter quase dez projetos. Mas a campeã é a China, que financia planos dentro de seu território e em outros países, como Indonésia e Casaquistão.

“O público e os governos são muito suscetíveis à ideia de começar uma cidade do zero e construir algo novo que resolva todos os problemas”, explicou Sarah Moser, professora de geografia da Universidade McGill e chefe do laboratório New Cities, que está mapeando o surgimento dessas cidades desde os anos 2000. “É uma ideia sedutora quando alguém apresenta uma bela cidade utópica construída do zero.”

RISCOS

Seu mapeamento vai desde projetos de enormes distritos construídos para serem conjuntos habitacionais, como Cidade do Povo, no Acre, até megaprojetos como Masdar, nos Emirados Árabes. “As pessoas ficam empolgadas com isso, mas não são especialistas e não sabem quais são as consequências ou os riscos”, disse.

Uma megacidade do futuro pode ter diferentes objetivos. No caso de Neom, a intenção é reduzir a dependência da economia saudita do petróleo. Songdo, na Coreia do Sul, foi construída para ser um hub de negócios – e é o primeiro exemplo de sucesso do que se propõe. Outro nome famoso é Khorgos (ou Horgos), na China, que se propõe a ser uma zona econômica especial.

“Estilo de vida confortável. Conveniência. Educação de qualidade. Songdo oferece tudo isso. Os moradores da cidade encontram tudo o que precisam. Trabalho, casa, escola e lazer estão sempre a apenas 15 minutos a pé”, diz a campanha de divulgação no site oficial da cidade. Já Khorgos faz parte de um imenso projeto chinês da Nova Rota da Seda para conectar Oriente e Ocidente e escoar produtos com mais fluidez.

Mas há um problema: ninguém quer morar nessas cidades. Songdo abriga um terço do que planejou e sua meta de inauguração já foi adiada de 2020 para 2022 e ainda não está concluída. “As pessoas querem viver em Seul, porque é onde está a cultura, a vida noturna, suas famílias”, afirmou Moser. “Quem se mudou para Songdo foi sem muita vontade. É uma cidade muito pequena, muito parada.”

O mesmo fenômeno acontece em Sejong, também na Coreia do Sul, e em Ordos Kangbashi, na China, conhecida como “a maior cidade fantasma do mundo”, construída para ter 1 milhão de habitantes e tem 150 mil.

“Neom promete abrigar 9 milhões de pessoas. Eu não consigo encontrar uma única pessoa que gostaria de morar lá”, afirma Moser. “Dizem que seria como morar em um shopping em que você nunca estivesse do lado de fora. Se Bin Salman conseguir encontrar 9 milhões de pessoas, vou ficar bem surpresa.”

Moser explicou que a criação de novas cidades é algo antigo da humanidade. Mas nunca se viu uma explosão tão grande de projetos como dos anos 90 pra cá, uma onda impulsionada pela busca de investimento estrangeiro e empresas de tecnologia.

Neom não é o único projeto da Arábia Saudita, há cerca de cinco no reino, inclusive o megaprojeto King Abdullah Economic City. A Indonésia tem mais de 10, a Tanzânia tem 11 e o Marrocos passa das duas dezenas. “Empresas privadas estão envolvidas na construção”, aponta o relatório do laboratório de Moser em 2020. “Promotores imobiliários procuram novos mercados o tempo todo e estão lucrando com esses projetos”, disse Moser.

FRACASSOS

O resultado é uma série de projetos não executados ou inacabados com custos elevados – como Ciudad del Conocimiento Yachay, no Equador, planejada para ser “o Vale do Silício dos Andes”. Em seis anos, o projeto recebeu um investimento de US$ 600 milhões em recursos públicos, mas abriga somente mil estudantes, segundo relatório da Assembleia Nacional do país.

O Estado equatoriano foi o maior investidor do projeto, que contou com a participação de duas estatais chinesas. “Capital chinês está circulando globalmente e estão construindo cidades por toda parte: em Sri Lanka, Malásia, Mianmar, Omã, muitos lugares que são geopoliticamente estratégicos para os interesses da China”, afirmou a professora.

Todos os novos projetos estão localizado no chamado sul global, onde estão os países de menor renda e, portanto, os maiores problemas envolvendo suas cidades atuais. Nessas condições, a ideia de fazer novos centros econômicos parece sedutora, ainda que o custo seja alto – estas regiões também concentram a maior quantidade de governos autoritários.

“Se esses projetos surgissem no Canadá, por exemplo, haveria protestos e os políticos perderiam suas carreiras. É por isso que muitas dessas novas cidades estão surgindo em um contexto autoritário onde os cidadãos não têm conhecimento sobre o que está acontecendo e não há nenhum tipo de processo de participação pública”, disse Moser.

RELAÇÕES PÚBLICAS

Neom faz parte de um projeto muito maior, o Vision 2030, que busca superar a imagem de autoritarismo e violação de direitos humanos que o governo saudita tem. “O principal problema de Salman é que todos o odeiam”, afirmou Moser.

Além de não resolver os problemas econômicos e sociais, essas megacidades acabam acentuando outro problema: a exclusão social. A África concentra mais de 70 projetos que prometem ser para “pessoas de baixa renda”, mas os preços da moradia tornam a promessa inviável.

“Há um no Quênia em que as casas custavam US$ 200 mil e um salário da classe média é de US$ 20 por dia. Então a hipoteca seria de 500 anos. É impossível pagar isso. Eles estão basicamente mentindo e deturpando o projeto para evitar críticas”, disse Moser.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.