Nove padres se suicidaram em 2021, o que fazer? (Imagem: Pixabay)

No dia 07 de novembro passado, mais um padre tirou sua própria vida – já são nove só em 2021! O que fazer? Infelizmente, o número de suicídios permanece elevado no Brasil e no mundo: segundo o anuário brasileiro de segurança pública, em 2020 foram registrados no país 12.895 suicídios. É um número elevado, o que fazer?

As causas que levam uma pessoa a tirar sua própria vida são as mais variadas possíveis; o que, sim, é comum a todos os casos é o fato de enxergarem na morte a única saída – ainda que desesperada – para aquilo que estão vivendo. Se comparamos os índices, podemos até relativizar a problemática do suicídio de padres: o número de padres que tira a própria vida não chega a 0,0007% dos casos (é preciso registrar a diferença do período usado para a comparação, mesmo assim a variação permanecerá inexpressiva). Pode um padre se suicidar?

Não dispomos em português da mesma semântica dos idiomas anglo-germânicos que distinguem entre poder de permissão e poder da ação – no caso do inglês, a distinção é feita pelo uso dos verbos auxiliares may e can, no caso do alemão, dos verbos auxiliares dürfen e können.

Como todo ser humano, o padre não pode – não tem a permissão – de tirar a própria vida. Não se trata de uma imposição moral advinda da sociedade, tampouco da religião, mas de uma disposição ética profunda do ser humano que o permite contemplar a vida como absoluta gratuidade da qual não tem a permissão para dispor.

Possivelmente, essa tenha sido a motivação que teve A. Calmus ao afirmar que o único problema filosófico que deve ser levado a sério é o suicídio. Não se trata somente da negação de Deus e do mundo, mas a negação de si mesmo, da inteligência e da liberdade que permitem ao ser humano recomeçar do zero todos os dias. Por isso, filosoficamente, nenhum ser humano pode – ou tem a permissão – de tirar a própria vida.


Sacerdote é também ser humano

Entretanto, o padre, como todo ser humano, pode – tem o poder da ação – para tirar a sua vida; os números, infelizmente, comprovam esse poder, essa ação. Mas por que tantos se escandalizam diante do suicídio de um padre? Diria até mais precisamente, o suicídio de todo ser humano deveria produzir o mesmo escândalo, afinal de contas, como mencionei anteriormente, se trata de negação de si mesmo. Entretanto, o fim doloroso e dramático da vida de um padre, que tira a própria vida, escandaliza muito mais. Por quê?

Talvez a resposta a essa pergunta possa iluminar a reflexão sobre o problema. Não pretendo dar uma resposta definitiva, somente tenho a pretensão de oferecer – a quem quiser – alguns elementos para a reflexão.

Circula pelos grupos de padres do WhatsApp, uma carta de um irmão padre que insiste muito no zelo que cada um de nós deve ter por si mesmo. O Pe. José Alves, que tirou sua vida no último dia 07 de novembro, escreveu pouco antes de cometer o ato desesperado “Amo minha Igreja”. O autor da carta muito assertivamente se questiona: mas a Igreja ama seus padres?

Ele enumera diversas situações que empurram os padres para as crises que podem levar ao suicídio, como no caso do Pe. José: a pouca atenção dos bispos, a pressão de ser bons administradores e exímios ministros pastorais, a frieza das relações dentro do presbitério, a pressão das comunidades, as denúncias – muitas vezes falsas –, a dureza do Código do Direito Canônico, que se mostra, em algumas ocasiões, muito mais importante que o Evangelho.
Por mais que tenha enumerado diversas situações, que são propriamente sintomas da grave crise, penso que o autor da carta não tocou – não por incapacidade ou falta de percepção – o problema mais profundo que jaz sob a situação: a “sacralização”, quando não, o “endeusamento” do padre.

Acúmulo de funções?

O padre hoje é um ministro ordenado que acumula os serviços dos diakonói e dos presbyterói do Novo Testamento, isto é, estar a serviço da Palavra, da mesa, especialmente dos pobres (entenda-se por mesa, a Eucaristia, sacramento da partilha do pão), e das comunidades (At 6,1-6). Em nenhuma passagem do Novo Testamento, os ministros ordenados se identificam com a palavra hiereùs (sacerdote): diáconos, presbíteros, profetas, apóstolos, episkopói (bispos) são os nomes dados aos mais diversos serviços dentro da comunidade.

De fato, se não fosse pela Carta aos Hebreus, a tradição cristã teria excluído por completo a função sacerdotal. Não pode se esquecer que foram os sacerdotes do Templo de Jerusalém que se posicionaram contra Jesus em seu julgamento (Jo 18,19-24); o próprio Jesus sempre se mostrou muito crítico ao poder sagrado com o qual o Templo e os sacerdotes estavam revestidos (Mc 13,1-2).

Mas retomando a Carta aos Hebreus, é mister destacar que a função sacerdotal de Jesus apresentada pelo autor do texto neotestamentário se destaca pela misericórdia para com suas irmãs e seus irmãos (Hb 4,15); o sacerdócio em Jesus não é entendido como “sagrado”, isto é, separado, mas bondoso e compassivo.

História da Igreja

Ao longo da patrística, especialmente no período pré-niceno, a Igreja – a comunidade, não a instituição em primeiro lugar – era a verdadeira sacerdotisa, porque oferecia ao Pai, na força do Espírito Santo, o maior de todos os dons recebera: o próprio Jesus Cristo. Contudo, o ministério ordenado passou por profundas transformações com a assunção do Cristianismo a religião oficial do Império Romano: os ministros ordenados, sobretudo os bispos, assumiram traços dos dignatários do império, entre eles seu “endeusamento”.

A história testemunha esse processo de distanciamento do clero – palavra que jamais deveria ter sido usada no Cristianismo – daquelas e daqueles que receberam o nome de leigas e leigos. Se esse nome é compreendido desde sua riqueza etimológica, isto é, desde sua origem na palavra laós (povo), tudo bem; porém, se é compreendido como distinção, ou mais precisamente, subordinação ao clero; tudo errado.

Durante a Idade Média europeia, a sacralização dos ministros ordenados foi sobreacentuada, quando eles se viram obrigados a assumir elementos próprios da vida religiosa monástica, concretamente o celibato e a vida de oração mediante a recitação dos salmos várias vezes ao longo do dia.

A passagem da Idade Média para a Idade Moderna reforçou esse processo quando os reformadores levantaram sérias questões sobre o sacramento da Ordem. Somente no século XX, com o Concílio Vaticano II, houve um resgate das bases bíblicas e patrísticas do ministério ordenado.

Vaticano II e a contemporaneidade na Igreja

Não obstante, “a volta à grande disciplina”, como descreveu J. B. Libânio, durante o pontificado de João Paulo II significou um congelamento, se não um retrocesso, para os avanços conciliares. Bispos e padres, desde então, somos vistos como seres “divinos” que renunciam a tudo nesta vida para se dedicar à “salvação das almas”. O “sacerdote sagrado” se sobrepõe ao “presbítero”, isto é, àquele que goza do respeito da comunidade porque está a serviço dela.

Ainda que muitos padres compreendam seu ministério em unidade com as comunidades, não são poucos os exemplos que se entendem a si mesmos como “criaturas angelicais”, uma espécie de “terceiro gênero” dessexualizado, como bem aponta J. Tricou, professor da Universidade de Lausanne/ Suíça, em seu livro “Des soutanes et des hommes. Enquête sur la masculinité des prêtes catholiques” (Das batinas e dos homens. Pesquisa sobre a masculinidade dos padres católicos, em tradução livre).

Não somos “seres divinos”, nem “criaturas angelicais”, somos homens que compartilham com os demais homens e as mulheres as mesmas angústias do dia a dia. Afirmava acima que o autor da carta sobre o suicídio de padres enumerou uma longa lista de sintomas, mas penso que a verdadeira causa está no “endeusamento”, na “sacralização” dos padres que tem como resultado a pior enfermidade da Igreja, o clericalismo tão denunciado pelo Papa Francisco.

A divinização – para usar um termo da Patrística – do padre é a mesma que se dá em todas as cristãs e todos os cristãos no dia de seu Batismo. Os padres não somos “privilegiados” por termos recebido o sacramento da Ordem; somos, sim, capacitados pela graça para servir a comunidade, da qual nunca devemos nos afastar. Não somos “especiais”, não somos super-homens que devem ser excelentes administradores dos bens eclesiásticos e gênios pastorais. Somos falhos, muito falhos! E as comunidades não deveriam se escandalizar disso. Pelo contrário, elas também devem estar próximas de seus padres e não lhes fazer a vida impossível cobrando além de seus limites.

A formação sacerdotal precisa mudar

Como mencionei anteriormente, não pretendo apontar nenhuma resposta definitiva ao problema, simplesmente iluminar a reflexão. Padres não são seres especiais, são homens frágeis como quaisquer outros e, por isso, infelizmente podem – têm o poder da ação – para tirar sua própria vida.

Enquanto, a Igreja impor a seus padres um “endeusamento” indevido, continuaremos registrando o aumento do número dos casos de suicídio de padres. Se a Igreja quer fazer algo de bom para seus padres, em primeiro lugar, não passe os longos e árduos anos da formação “enfiando na cuca” dos seminaristas que foram eleitos para o mais sublime de todos os ministérios; não os torne uma casta apartada do mundo e da vida.

Não é intenção deste texto, mas precisamos conversar urgentemente sobre os seminários! A formação sacerdotal precisa ser revista, reformulada, repensada. Precisamos criar seres humanos prontos para servir, mas também escutados em suas limitações e fragilidades. Se a Igreja quer evitar que as mídias mostrem sua fragilidade porque mais um padre se suicidou, procure urgentemente superar o maior câncer que a aflige, o clericalismo.

Já é passada a hora de renunciar a símbolos de honra e poder, como as vestes clericais. Já é passada a hora de nos enxergarmos a nós mesmos como batizados antes de ministros ordenados. Já é passada a hora de sermos Povo com e como nosso povo, como refletiu J. Sobrino ao escrever sobre o Emanuel – el Dios con nosotros y como nosotros. Já é passada a hora de nos escandalizarmos todas as vezes em que um ser humano atenta contra sua vida.

* Pe. Matheus S. Bernardes é sacerdote da Arquidiocese de Campinas/SP e professor de Teologia da PUC-Campinas.