Problemas advindos de uma teologia mal vivida corroboram para dificuldades na Igreja, que sofre por meio de escândalos sexuais e abuso de poder por parte de seus membros. (Imagem: Pixabay)

Poucos meses depois dos atentados de 11 de setembro de 2001 contra alvos civis em Nova York e Washington nos EEUU, o jornal The Boston Globe publicava o que foi considerado um dos maiores – senão, o maior! – escândalo da Igreja Católica em tempos recentes.

Na publicação, foram relatados diversos casos de abusos sexuais perpetrados por membros do clero católico a crianças e adolescentes ocorridos em várias dioceses norte-americanas. Foi o estopim para que outras tantas denúncias fossem realizadas em diversas partes do mundo. Tristemente, os casos se multiplicavam…

Na última semana, o UOL publicou uma longa reportagem sobre casos de abusos diversos cometidos pelo então Pe. Ernani Maia dos Reis contra monges e monjas, em Monte Sião/ MG. Não se trata, contudo, do primeiro caso de abuso por um fundador carismático: basta recordar os abusos sexuais de Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo, e todas as acusações de abusos de consciência e um abuso sexual, que saíram à luz pública em 2020, contra José Kentenich, fundador do Movimento de Schoenstatt.

Por outro lado, não precisamos ir muito longe: em 2016, Roberto Lettieri, que ficou conhecido por seu trabalho com a Toca de Assis, foi expulso do estado clerical por abusos diversos contra religiosos e a mesma coisa aconteceu, em 2019, com Jean Rogers Rodrigo de Souza, conhecido como Pe. Rodrigo Maria.

Talvez, esteja quem reaja visceralmente contra a disciplina do celibato imposta aos clérigos católicos, há quase um milênio, como a “suposta” causa de abusos. Entretanto, o problema é muito mais profundo…

Não se trata somente de uma problemática sexual, por exemplo uma desordem ou uma perversão, como é o terrível caso da pedofilia. O que favorece todas essas situações de abuso – seja de consciência, moral ou sexual – é um grave erro da compreensão do ministério ordenado por parte da instituição, das comunidades e daqueles que o exercem.

Em todos os casos mencionados, sempre se associou à figura carismática um poder que não lhe é próprio, isto é, o poder divino. Tanto que nos relatos daquelas e daqueles que foram por eles abusados sempre aparece a expressão “nosso pai”. O próprio Jesus sentencia categoricamente: “A ninguém na terra chameis ‘Pai’, pois um só é o vosso Pai, o celeste” (Mt 23,9). A afirmação de Jesus nos aponta não só a proibição literal nela expressa, mas o erro de associar unilateralmente, isto é, sem reservas atributos próprios de Deus a seres humanos.

Mas mulheres e homens não podem transparecer Deus? Claro que sim! Porém, jamais serão Deus – a expressão “nosso pai” implica uma relação de confiança e transparência que não corresponde a nenhum ser humano, senão só a Deus. Por mais que nos confiemos a alguém, sempre haverá uma reserva da própria consciência, como bem explicita a Constituição Pastoral Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II (GS 16); a consciência, como já ensinava Santo Agostinho de Hipona, é onde pessoa ouve a voz de Deus (Conf X: 1,1). Aquele que pretende ocupar o lugar de “nosso pai”, porque ao redor dele há uma “auréola misteriosa”, está invadindo um âmbito que não lhe corresponde. Daí, o caminho para os mais diversos abusos é bem curto.

É certo que há personalidades doentias que sabem aproveitar muito bem essas situações. Mas também há mecanismos institucionais que favorecem o surgimento e a manutenção de abusos. E sobre isso, temos que falar!

Especialmente a partir da segunda metade do século XX, o número de personalidades carismáticas que fundaram movimentos, associações e comunidades de vida cresceu exponencialmente. Todavia, esse crescimento não foi devidamente acompanhado pelas autoridades eclesiásticas. Diante do desafio da perda de fiéis para o mundo secularizado e as diversas confissões cristãs, religiões e formas de espiritualidade, muitos detentores do poder eclesiástico fizeram vista grossa para problemas graves que aconteciam dentro de movimentos, associações e comunidades de vida.

Francisco, há pouco, refletia sobre o exercício da autoridade nos movimentos: “considerando os casos de abuso de vários tipos que ocorreram nessas realidades e que têm sempre a sua raiz no abuso de poder. Muitas vezes, a Santa Sé teve que intervir nos últimos anos, iniciando difíceis processos de reabilitação. Penso não só nessas situações muito ruins, que fazem muito barulho, mas também nas doenças que vêm do enfraquecimento do carisma fundacional, que se torna morno e perde sua capacidade de atração” (Papa Francisco, 16 set. 2021). Sua preocupação é mais que legitima!

Ao mesmo tempo, não podemos nos esquecer da compreensão – autocompreensão, melhor dito – que padres possuem de seu ministério presbiteral. O Concílio Vaticano II indicou o caminho para a “des-sacerdotização” dos padres resgatando o ministério neotestamentário dos presbíteros (LG 28 e PO). A função sacerdotal no Antigo Testamento estava diretamente vinculada ao culto e ao sagrado; aqueles chamados a servir às comunidades do Novo Testamento não se veem, em primeiro lugar, como servidores do sagrado, mas como enviados para anunciar a Boa-nova do Reino de Deus (Mc 16,15).

A Igreja de Jesus, portanto, não comporta um “ministério do sagrado”, mas um “ministério a serviço do Reino” ou, em palavras mais contemporâneas, um “ministério missionário”. Nesse sentido, o ministro cristão não é “santo” – entendido como “separado”, “intocável” –; é um homem chamados a servir comunidades concretas, mas como um membro seu. Nada menos cristão que considerar os padres “acima” das comunidades, como se fossem figuras quase angelicais. Não! São tão humanos como os demais membros da comunidade.

A compreensão – autocompreensão, insistimos – de um ministério sagrado nas comunidades cristãs também abre espaço para abusos. Possivelmente, em uma grande parte das comunidades cristãs não nos encontremos com abusos de consciência, moral e sexual – graças a Deus! Porém, nos encontraremos, sim e com frequência, com abusos de poder, financeiros e patrimoniais. Por que o padre tem que residir na maior casa do bairro? Por que sempre tem que ter o carro do último modelo? Francisco já teve oportunidade de expressar sua preocupação com isso (Papa Francisco, 06 jul. 2013).

Sabemos que o questionamento é pesado, mas s perguntarmos se não há nela espaço – pequenos e grandes porões subterrâneos– que favorecem o surgimento de uma mentalidade abusiva que chega a ser criminosa, em caso de personalidades doentias, e pelo menos, escandalosa, em casos de personalidades mais equilibradas.

Está correto afirmar que os casos são muito diversos e não podemos tratar um abuso sexual da mesma forma como abordamos um abuso de poder ou econômico. Fato! Mas ambas as situações são abusivas e a “auréola misteriosa” ao redor dos ministros ordenados nada ajuda a colocar um fim definitivo nessas feridas que fazem o Corpo de Cristo sofrer tanto.

Pe. Matheus S. Bernardes é sacerdote da Arquidiocese de Campinas/SP e professor de Teologia da PUC-Campinas.