A República de Platão nos põe pra pensar: e se, em vez de alguns reis-filósofos comandando magnanimamente a turba indisciplinada, nos concentrássemos em construir uma democracia cheia de gente filósofa? (Imagem: Pixabay)

Desde que o atual representante tupiniquim entrou na cena política, tenho pensado muito sobre os reis-filósofos da República de Platão. Em um clima de políticos que quebram as normas, aumentando a polarização, a desconfiança e o desespero crescente sobre a falta de um discurso político produtivo, é fácil desejar que nossos próprios líderes fossem mais como os governantes magnânimos e sábios descritos por Platão, que abnegadamente promovem o florescimento coletivo da cidade ideal.

Os Estados Unidos já demonstraram tal ensejo do povo, pois o Sr. Trump não está mais na Casa Branca, por exemplo. Quem dera esse desígnio recaísse sobre o Brasil em 2022. Ontem a pesquisa Datafolha mostrou que a reprovação do Sr. Bolsonaro subiu e atingiu 51% – maior índice de rejeição enfrentado desde sua eleição:

“A pesquisa Datafolha divulgada em 8 de julho ainda mostrou que 52% veem o presidente como desonesto, 55% como falso, 58% como incompetente, 62% como despreparado, 66% como autoritário, 57% como pouco inteligente e o mesmo percentual o considera indeciso. Bolsonaro também é visto como quem favorece os que têm mais posses para 66% da população”, expôs a conta @midianinja no Instagram. 


A filosofia sábia do Rei Salomão

O desejo por líderes sábios me lembra um pouco dos conceitos teológicos que vislumbramos sobre o Rei Salomão, quando tratamos de uma hermenêutica bíblica que observa a importância de uma boa gestão política. Com a morte do Rei Davi, Salomão não tinha direito ao trono de Israel, que deveria ser entregue ao seu meio-irmão Adonias. Porém, os relatos bíblicos afirmam que, por vontade divina, seguida da perspicácia de sua mãe Bate-Seba e com o apoio dos sacerdotes e do povo, Salomão foi elevado ao trono. Isso conduziu a comunidade israelense a intrigas e conspirações pelos partidários de Adonias. 

Nos dias de hoje, alguém chamaria isto de “golpe”. O curioso é que, de acordo com a tradição judaica, Salomão provou ser merecedor do cargo. Dizem que foi um grande governante, um juiz justo e imparcial – daqueles de dar inveja ao midiático Sr. Sérgio Moro. Ademais, teve habilidade para desenvolver o comércio da região, manter boas relações diplomáticas com países vizinhos – o que o tornou um líder pacífico e não guerreador como fora o pai. Ora, este é um pequeno resumo do quanto nosso mandatário poderia aprender com os princípios de filosofia, sabedoria e pacifismo do “golpista” Salomão. 


Do pacifismo à tirania alardeada pela República de Platão

O conto de advertência de Platão sobre a queda da democracia é um tanto quanto assustador. No relato de Platão, um homem forte que promete lutar pelo povo é escolhido democraticamente, mas seus desejos incontroláveis ​​conduzem a uma rápida queda para a tirania. Platão observa que, para evitar esse fim infeliz, precisamos de governantes virtuosos e benevolentes que sejam governados pela razão, e não por seus desejos irracionais. Em outras palavras, precisamos de um presidente filósofo-sábio tal qual Salomão! 

Alguns podem ter esperado que o Sr. Presidente fosse o líder virtuoso e razoável adequado para lidar com nossas divisões. Mas, por mais que queiramos uma figura para nos unir como nação, os incentivos e obstáculos que constrangem os políticos tornam impossível (e não democrático) esperar que até mesmo o líder mais magnânimo endireite este navio em meio a um caos político, a constrangimentos teológicos e à crise provocada pela pandemia.

Se tivéssemos um Congresso inteiro de tais líderes, o que claramente não temos, o Brasil que clamava por um governante sábio, que decidiu eleger um crente num “Deus acima de todos”, teria ainda dificuldade para ser conduzido ao seu curso almejado.

Mas, peraí: e se Platão estiver certo sobre a importância do filósofo para a cidade florescente e errado sobre o papel que ele ou ela deve ocupar lá? E se, em vez de alguns reis-filósofos comandando magnanimamente a turba indisciplinada, nos concentrássemos em construir uma democracia cheia de gente filósofa? Essas pessoas poderiam crescer nas virtudes que os filósofos valorizam e, ao fazê-lo, exigir melhor de seus líderes eleitos democraticamente.

Pessoas que esperam transparência, que exigem verdade, que fazem perguntas curiosas e que reconhecem as moderações de seu conhecimento e as limitações de seus líderes poderiam garantir um melhor engajamento de baixo para cima. Que diferença isso faria em relação à política de medo, desinformação e propaganda enganosa, de cima para baixo, populada em nossas redes digitais? Insisto: e se tivéssemos um presidente filósofo?

Olha gente, comecei a ver isso como uma opção real – pra salvar o Brasil – por dois motivos. Em primeiro lugar, formar pessoas filósofas fornece algum senso de esperança de que nosso futuro coletivo e democrático possa ser melhor do que nosso presente. Em segundo lugar, tenho visto evidências de que isso é possível entre os alunos das universidades onde trabalho. Especialmente após provocação sobre o tema de “volta da Monarquia” comentada por um colega de trabalho, citando a República de Platão. Sim, comentávamos sobre o quanto nossos jovens têm buscado cada vez mais pela tradição e pelo retorno de valores dos séculos passados. Afinal, para muitos está difícil vislumbrar um rumo saudável para nossa sociedade republicana… Porém, pensei em uma sugestão menos radical. 


Precisamos de mais filósofos, de um presidente filósofo

Em seu sentido antigo, corporificado no pensamento ocidental por Sócrates, Platão, Aristóteles e os filósofos helenísticos, a Filosofia é uma espécie de treinamento para viver bem. Nesse modelo, os filósofos se engajam em exercícios para desenvolver as virtudes necessárias para o florescimento humano. As virtudes referem-se aos hábitos, atitudes e disposições que fazem de uma pessoa o tipo de pessoa que é. Nós fazemos coisas virtuosas por causa de quem nós somos.

Várias tradições priorizam diferentes virtudes morais e intelectuais, e os eticistas contemporâneos das virtudes podem questionar meu uso geral do termo aqui. Mas existem várias virtudes, creio eu, que são pré-condições para um engajamento político produtivo e, portanto, imperativo para o povo filósofo se desenvolver: humildade intelectual, atenção, curiosidade e empatia – só pra começar.

Essas virtudes são necessárias para ser um pensador claro, um bom conhecedor e um participante engajado na democracia. Então, qual é o valor dessas virtudes particulares para nossa democracia? Tome a humildade intelectual como exemplo. Quando pratico a humildade intelectual, parto do pressuposto de que não sei tudo e que minhas próprias opiniões poderiam se beneficiar com o teste de clareza e consistência. Depois de perceber isso, cada compromisso é uma oportunidade de aprender mais sobre os pontos fortes e fracos de minhas próprias visões.

E no caso da empatia: se estou realmente curioso sobre a experiência de outra pessoa e ouço para compreender, é mais provável que eu imagine como me sentiria no lugar dela. É menos provável que eu os veja como um outro e mais provável que os veja como dignos da consideração moral que desejo para mim. Ora, isso nos faria evitar tanta perda de tempo e energia ao pensar que alguém seria capaz de ganhar U$ 1 dólar por vacina no meio de uma pandemia mundial, onde apenas a vacinação em massa se apresenta como solução para milhares de mortes diárias.


Já não importa direita ou esquerda: importa o bem comum
 

Se os filósofos se comprometem a crescer nessas virtudes essenciais para um bom engajamento, podemos imaginar um futuro melhor do que o presente, no qual a polarização não interrompa automaticamente o engajamento produtivo. Afinal, essas virtudes não são proveniência da direita ou esquerda política. Em vez disso, qualquer pessoa minimamente decente deve se esforçar para incorporá-los. Precisamos de pão para quem tem fome e sede de justiça. É algo básico. 

Se esse tipo de compromisso com a transformação filosófica, em sua forma antiga, pudesse ser buscado em uma escala mais ampla, criaria um obstáculo natural para as forças iliberais e não democráticas que prosperam com a desinformação, a vilania, a propaganda e o medo. Se isso fosse possível, eu seria a primeira a dizer: “Esqueçamos os reis-filósofos e a febre pela volta da Monarquia… Se desejamos o bem comum, precisamos mesmo é de gente filósofa!”