Papa Francisco segue cada vez mais consciente dos malefícios do tradicionalismo para a liturgia e a unidade da Igreja. (Imagem: Pixabay)

Versus Deum, versus populum (II)

Um breve comentário sobre o motu proprio Traditionis Custodes do Papa Francisco

O problema que levou Bento XVI ao motu proprio Summorum Pontificum e Francisco ao motu proprio Traditionis Custodes é o mesmo: a Eclesiologia do Povo de Deus do Concílio Vaticano II.

Das várias imagens bíblicas usadas na Constituição Dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja a que mais ressalta ao ler o documento é o Povo de Deus (LG II). A Igreja não é uma sociedade perfeita (societas perfecta), como no tempo pós-tridentino, mas um Povo peregrino neste mundo. Assim como Deus reuniu seu Povo ao sair do Egito (Ex 13,17-14,31), também reúne a Igreja em Jesus Cristo e pela força do Espírito Santo, a Igreja.

Os membros da Igreja mais que se distinguir se igualam uns aos outros pelo Batismo que nos incorpora, a todas e a todos, em Cristo e em seu Corpo. Antes de sermos bispos, presbíteros, diáconos, religiosas e religiosos, somos cristãs e cristãos, batizadas e batizados, filhas e filhos de Deus, irmãs e irmãos em Cristo. A missão da Igreja, isto é, anunciar o Evangelho do Reino de Deus como mostrou Paulo VI na exortação apostólica Evangelii Nuntiandi, pertence igualmente a todas e a todos.

A liturgia, portanto, deve ser expressão dessa igualdade fundamental das cristãs e cristãos; é celebração da fé do Povo de Deus, é comunhão com o Senhor em sua Palavra e nos Sacramentos, mas também nas irmãs e irmãos que ouvem atentamente essa Palavra e se reúnem em torno do altar. É de se entender, portanto, que a Eclesiologia do Povo de Deus tenha como consequência uma liturgia participativa, na qual toda a assembleia toma parte plena, consciente e ativamente (SC 14).

Durante o Vaticano II, um pequeno grupo liderado pelo bispo francês Marcel Lefebvre se recusou a acolher essa visão de Igreja aberta a todas e todos e ao mundo e não aceitou as reformas, também na liturgia, propostas pelo Concílio e levadas a cabo por Paulo VI e João Paulo II. Lefebvre fundou a Fraternidade Sacerdotal São Pio X, cuja principal meta era conservar os ensinamentos pré-conciliares. Em 1988, foi excomungado por João Paulo II por ter sagrado quatro presbíteros de sua Fraternidade bispos sem o devido mandato pontifício, ou seja, sem validade canônica.

No entanto, o próprio João Paulo II permitiu que sacerdotes da Fraternidade, assim como fiéis que os seguiam e pretendiam se manter em comunhão com Roma, pudessem ainda celebrar a Eucaristia seguindo o missal de Pio V (Missale Romanum). Anos depois, mais especificamente em 2007, Bento XVI, mediante o motu proprio Summorum Pontificum, insistiu que o tema recebesse a devida regulamentação jurídica. A intenção de ambos os Romanos Pontífices era clara: abrir espaço para diversos grupos dentro da comunhão eclesial; logo, essa concessão só deve se entender no empenho pela unidade da Igreja – o que infelizmente não aconteceu.

Francisco, passados 13 anos dessa promulgação, realizou uma ampla consulta aos bispos para verificar a fecundidade ou não da prática. E no dia 16 passado, com o motu proprio Traditionis Custodes, acabou por limitá-la drasticamente por razão de abusos cometidos na celebração eucarística. Alguns pontos de especial relevância:

– os livros litúrgicos promulgados por Paulo VI e João Paulo II são a única expressão da lex orandi (norma de oração) da Igreja Católica de rito latino;

– corresponde ao bispo diocesano – e só a ele – autorizar ou não o uso do missal de Pio V;

– o bispo diocesano deve determinar um ou vários lugares para a celebração eucarística seguindo o missal de Pio V, porém que não seja a igreja paroquialnovas paróquias pessoais para os grupos que se sintam vinculados a esse modo de celebrar a Eucaristia; nomear um sacerdote que possa acompanhar esses grupos e que, portanto, saiba latim; também deve se ocupar de que novos grupos como esses não sejam criados em sua diocese;

– as leituras devem acontecer em idioma vernáculo durante a celebração.

Trata-se de um documento de extrema importância para a vida da Igreja nos dias de hoje, quando muitas e muitos assistimos os excessos cometidos especialmente por sacerdotes e grupos ultraconservadores. Para que um sacerdote ou um grupo possam fazer uso do missal de Pio V, devem solicitar a autorização ao bispo diocesano.

Contudo, o que mais queremos ressaltar nesta reflexão é o que Francisco escreveu na carta destinada a todos os bispos que acompanha seu motu proprio: aquilo que Bento XVI alertou para não acontecer no artigo 1º de Summorum Pontificum, infelizmente se deu. Não são poucos os casos de grupos tradicionalistas afirmarem que são portadores da “verdadeira Igreja”, enquanto aquelas e aqueles que seguem o Romano Pontífice, os bispos e conferências episcopais e, sobretudo, o Vaticano II não a representam.

O que num princípio era uma possibilidade para a comunhão eclesial se tornou uma pedra de tropeço. Infelizmente, a lex credendi (norma da fé) na imaginação de muitos membros desses grupos tradicionalistas não foi preservada em sua integridade. Os usos e os abusos de véus e correntes, assim como os excessivos gestos litúrgicos e a dureza e frieza da doutrina, especialmente no que se refere à moral sexual, por parte desses grupos acabaram por causar divisão no Corpo de Cristo e afastamento de muitas irmãs e muitos irmãos que se aproximavam com coração sincero da Igreja.

Francisco se mostra mais uma vez um homem de coragem e assume sua missão de conservar a unidade e a comunhão eclesial. Não o faz, porém, desde a dureza das normas, mas desde a misericórdia, que tanto tem caracterizado seu pontificado. As mudanças que ele introduz no motu proprio devem acontecer com cuidado pastoral e diálogo; elas não são impostas aos grupos tradicionalistas como pena, pelo contrário são um convite à conversão ao qual nenhuma cristã e nenhum cristão pode se esquivar.

Somos Povo em marcha. Ora, por nossa comunhão com Jesus Cristo, somos reflexo de sua Igreja; ora, por nosso pecado sobretudo quando viramos as costas aos pobres e aos oprimidos do mundo, somos pedra de tropeço e escândalo. O Povo em marcha não se alegra por ser verdadeiro ou falso, mas porque sabe que tem o Senhor a seu lado.

A liturgia é expressão da fé desse Povo peregrino que, entre os embates do dia a dia, se esforça para viver a justiça do Reino até que ele chegue em sua plenitude.

Padre Matheus da Silva Bernardes é  presbítero da Arquidiocese de Campinas. Vigário paroquial da Paróquia Santo Cura D’Ars, em Campinas, e professor de Faculdade de Teologia da PUC-Campinas.