Uma reflexão sobre mais uma moda da internet (Imagem: Pixabay)

 

Na liturgia católica do domingo 22 de agosto, lemos: “Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la?” (Jo 6,60). Estamos concluindo o capítulo seis do Evangelho segundo João que estamos meditando há algumas semanas.

 

Qual seria essa “palavra dura” dita por Jesus e motivo de escândalo para os discípulos? Deve ter sido algo pesado, porque muitos o abandonaram. Lembremo-nos dos principais fatos do trecho bíblico: o “sinal dos pães” que acontece no contexto da Páscoa (1-15), a multidão que vai até Cafarnaum atrás de Jesus e é questionada por ele se lá estava porque viu sinais ou simplesmente porque tinha comido pão (24-35), os fariseus que se perguntavam se ele não era o filho de José e se não conheciam sua mãe (41-51).

 

Poderíamos meditar dias sobre cada uma das passagens acima e o que nelas é nós narrado. Mas concentremos no “sinal”: Jesus é o Pão da Vida, aquele que veio para dar vida ao mundo. Quem partilha do Pão da Vida também se compromete com vida do mundo, isto é, se compromete a dar de comer a quem tem fome e beber a quem tem sede. A Eucaristia não é só cume da vida cristã, é recomeço: todas as vezes que partilhamos o Pão do altar, nos comprometemos a partilhar o pão do dia a dia, sobretudo com os necessitados e os excluídos. O sinal não só a Eucaristia em suas “espécies”, mas a vida eucarística de irmãs e irmãos na qual não há fome, nem sede; não há exclusões, nem divisões.

 

A “palavra dura”, portanto, é vida. Quem se compromete com o Pão da Vida, se compromete com a vida! Especialmente com a daquelas e daqueles que tem a própria vida ameaçada pela fome, pela sede, pela exclusão, pela divisão. Os discípulos queriam só as “espécies”, não queriam compromisso com a vida. Por isso, abandonaram Jesus. E nós?

 

Passa pela imaginação de muitas e muitos que simplesmente participando do rito da missa já possuem um bilhete carimbado “para o céu”. Será? Em outro trecho do Evangelho (Mt 25,31-46), não aparece nenhuma vez o questionamento sobre a quantidade de missas em que estivemos ou o número de terços que rezamos; o grande questionamento gira em torno da atenção aos pequeninos – quem tem fome, sede, é estrangeiro, está nu, na prisão ou doente. Não são as nossas pretensões que nos levarão “para o céu”…

 

Não deixa de nos chamar a atenção o fato de que sempre aparecem novas “modas católicas”, principalmente nos meios digitais. A moda da vez é a “quaresma de São Miguel”. Sejamos sinceros: não é tão da vez, porque é uma tradição da família franciscana que se remete ao próprio Francisco de Assis, assim como a medalha de São Bento não é invenção recente, mas se remete ao santo de Núrsia.

 

O que tem chamado a atenção é o estardalhaço vindo das redes sociais: legiões que passam horas conectadas, numerosos grupos que se levantam às 04h30, lives e mais lives sobre a dita “quaresma”. A pergunta que não quer calar é: para quê? Se muitas e muitos pensam que conquistaram “o céu” por tanto esforço, a resposta já sabemos: não! A oração é força motriz da vida cristã, mas para estar com Aquele que nos ama – não para conquistar ou ganhar  nada.

 

A propósito, a palavra “conquista” pode sugerir um sentido – ainda que equivocado – para essa “quaresma”. Como mencionávamos acima, toda essa movimentação nasce das tantas “modas” que vêm e vão; elas movimentam máquinas muito lucrativas e conquistam, sim, lucro para quem as promove. Mais uma vez, nos vem à mente uma passagem do Evangelho: Jesus condenando o comércio religioso (Jo 2,16). “Conquista” também nos aponta a outro problema sério: a religião entendida como prosperidade. Antes que as vozes se levantem e digam que isso se dá só no protestantismo, vejamos as motivações para a “quaresma”: bem-estar individual, prosperidade financeira, cura interior e tantas outras afins. O neoliberalismo também está acordando às 04h30 para que uns poucos lucrem e muitas e muitos fiquem olhando só para si e seus perrengues – nada menos cristão…

 

Para concluir: se essa legião de cibernautas católicos vivesse a Quaresma da Liturgia, que nos convida a caminhar com Jesus pobre e humilde até a Páscoa, com o mesmo fervor que estão vivendo essa “quaresma”, a vida da Igreja seria muito diferente.

Pe. Matheus S. Bernardes é sacerdote da Arquidiocese de Campinas/SP e professor de Teologia da PUC-Campinas.