Chico Buarque, seis anos depois, volta à música de fato. E o faz com o pé na porta, sem cerimônias, ainda que com a cadência que lhe cabe aos 73 anos de idade. Sem se expor demais, o cantor e compositor carioca saiu da toca e colocou nas prateleiras (reais e virtuais) , Caravanas, o 23º álbum de estúdio. Com ele, morde e assopra. Afaga e sofre de desamor. E, pincela subliminarmente uma visão política enquanto navega por mares tranquilos organizados, por vezes bastante singelos, por Luiz Claudio Ramos, o diretor e produtor do álbum. Há planos para uma turnê pelo País, mas, até o momento, nada foi confirmado. 

Chico é calor e frio aqui, é Tua Cantiga, uma canção de amor delicada, e As Caravanas, o beguine, um jazz latinizado dos anos 1930, transmutado em funk. Opostos que se unem, se alinham e costuram, do início ao fim. O retrato de um artista que já foi à frente de seu tempo, foi ultrapassado por ele e hoje flana, livre, por um espaço no qual sabe o que faz, sem correr riscos. Sem avançar demais. Nem de menos.

São meia dúzia de anos desde Chico, o álbum, até então último disco do carioca. Rumores para lá, rumores para cá. Ele está gravando um disco? Perguntavam-se todos. Estava, mas tudo foi às escondidas. Desde 2015, pingava, com mala, cuia e banda, para gravar um ou outra canção. Foi um registro a conta-gotas, oposto ao das produções recentes, quando se reunia diariamente para registrar as canções, em uma rotina que dizia ser extenuante. Chico, afinal, não tem mais pressa.

E no processo de erguer-se do silêncio e exílio musical do qual ele gosta – é bom lembrar -, Chico se cercou dos seus. Ramos está a seu lado há décadas e o auxilia na construção das camadas, poucas, responsáveis por dar suporte à voz frágil. Afetivo, ele tem consigo os netos. Moça e moço crescidos, Clara Buarque e Chico Brown, ambos filhos de Carlinhos Brown com Helena Buarque, atuam em Dueto e Massarandupió, respectivamente. No caso do guri, a música é dele, que mandou ao avô algumas composições. A canção quase não enviou por considerá-la a mais infantil foi a selecionada.

Na parceria com Clara, Chico regravou Dueto, canção originalmente registrada ao lado de Nara Leão, em 1980. Ao ter presença da neta e ao substituir versos de pravda e a vodca por nomes de redes sociais das novas formas de comunicação – que incluem e-mail, ligações por Skype e por aí vai -, Chico soa como alguém que vive um tempo que não é dele, mas o faz com graça. Diverte-se junto. A ponto de incluir Rafael Mike, do grupo de funk Dream Team do Passinho, para criar o beatbox nos momentos mais acalorados de As Caravanas. Sim, Chico subiu o morro. E colocou o funk para tocar na sua música de protesto.

Construiu Caravanas (e não confunda esse título do disco com a música responsável por encerrar o álbum, de nome As Caravanas) aos pouquinhos, em visitas periódicas ao estúdio da gravadora Biscoito Fino. Seu disco e sua visão para os tempos extremos e divisórios. O Chico, de seus 73 anos, que canta o hoje. O louco século 21 tem um Chico mais lúcido a olhar bem para ele. Frente a frente com o agora, Chico é outro. Aceita o inevitável – o tempo, esse canalha – e ainda se assume a favor da paz em tempos de ódio, como o faz em As Caravanas, a canção mais contestadora, irônica e sagaz do carioca em anos.

Porque, em um disco no qual se canta tanto sobre amor, Chico é sarcástico num discurso usurpado. Sacana, ele se porta como um burguês carioca a ver as caravanas, como ele compara, de ônibus que trazem moradores dos morros e das periferias do Rio às praias da zona sul, como Copacabana, Leblon, etc. É tão ácido que, talvez, haja quem não entenda o discurso. E isso também é interessante para um artista que já provocou a ditadura com versos escancaradamente óbvios, como em músicas como Deus Lhe Pague, ou ainda escondeu suas críticas no jogo de palavras – Cálice é uma aula do início ao fim no quesito.

Mostra que Chico, aquele que conhecíamos, ainda está lá, em algum lugar. Nas faixa que encerra o disco, ele deixa essa persona mais contestadora escapar daquele lugar confortável no qual se deita, cujas harmonias podem ser complexas, mas são macias, não pinicam e não causam dores nas costas.

O mundo não exige mais nada de Chico Buarque. Sua discografia está feita e estabelecida. Ainda assim, ele eventualmente coloca a cabeça para fora da toca. E quando o faz, é sempre Chico. Essencialmente Chico.


O Chico de agora tem amores impossíveis

Um Chico que, décadas atrás, já disfarçou as críticas sociais e aos militares, já escancarou-as. Defendeu seus interesses políticos, apunhalou o cale-se e, agora, é um retratista da sociedade ao seu redor. Apaziguado, talvez. Mas calma é a voz da idade.Não há pressa, vividez, como no Chico que batia com Construção e avançava enfurecido com Calabar. Caravanas é, portanto, o retrato do Rio de Janeiro – e do Brasil – que Chico vê quando pode ao caminhar pelas praias da zona sul carioca. É o amor efêmero de A Moça do Sonho, parceria com Edu Lobo, vagarosa, de voz, violão e violoncelo, e a guerra de classes eclodida durante os verões no Rio de As Caravanas – essa, o grande momento do disco. Quente, fatal.

Um homem que encara a idade também, cujo corpo é incapaz de desenvolver passes e dribles com as bolas nos pés dos tempos outros, cantado em nostalgia Jogo de Bola, composição de Chico só. Um compositor que traz os netos para o estúdio. Moço e moça crescidos, Clara Buarque e Chico Brown, que atuam em Dueto e Massarandupió, respectivamente.

Acima de tudo, Chico é esse homem frágil. Ciente que é quebrável e não imortal. Por isso, a deixa chegar a fragilidade do gogó. E a adorável. Não se engane, contudo, nada é fora do lugar. Até quando o está, é proposital. Porque Chico quer, descaradamente, duvidar de si, dele, o compositor, o cantor, o amante que não tem sua contraparte.

Sofre o velho Chico, machucado por amores não correspondidos, proibidos ou mesmo impossíveis. Coloca-se para baixo, como um jovem a sofrer uma fossinha de uma paixão que nunca ganhou sabor Nem beijo, nem gozo. Ficou ali, distante, no fértil campo das ideias do compositor.

Fico admirado por incomodar-te assim. Jamais pensei que pensasses em mim, canta em Desaforos, a oitava das nove de Caravanas. Tão cabisbaixo, um dos maiores compositores do País se posiciona no personagem falho, capenga. Custo a crer que meros lero-leros de um cantor possam te dar tal dissabor. Lero-leros, Chico? De alma devastada, ele segue, de cantarolar em cantarolar.