AMILTON DE AZEVEDO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRES) – Selina Thompson sobe no palco e se posiciona atrás de uma mesa. Ela observa a movimentação do público, com ternura no olhar. Quando o espetáculo “sal.” começa, a performer se apresenta. É uma artista, mulher, negra, que está no palco para nos contar uma história da diáspora.
A britânica não mede palavras e afirma: a Europa está banhada em sangue e sofrimento. A denúncia da permanência do racismo e de relações coloniais é central na obra. No entanto, ao partir de sua própria história, relações afetivas e memórias ganham força. Entre o texto dito e a cena, imagens são constantemente construídas -e destruídas por Thompson, em busca de sua identidade.
Encarnado pela performer -que transita por momentos de doçura, humor e crueza- o texto parece ter a capacidade de historicizar uma trajetória individual. Trata-se de uma dramaturgia com forte potência oral, muitas vezes na forma de poesia falada (spoken word). “sal.” narra a viagem da artista de navio cargueiro, saindo da Europa em direção à Gana e, posteriormente, para a Jamaica e Montserrat.
A rota escolhida, historicamente utilizada no comércio de escravos, também diz respeito às suas origens familiares. A avó, originária do pequeno território britânico no Caribe, faleceu logo no início de sua viagem-performance. Parece ser esse um grande disparador das reflexões de Thompson acerca de sua ancestralidade e pertencimento.
Do período embarcada, narra episódios cruéis de racismo vivenciados por ela e sua colega. De Gana, o possível encontro com uma origem; com seu povo e a dor de sua história. A Jamaica, terra de seus pais, aparece mais como um sonho do que como um lar. No meio de tudo, as reflexões sobre as consequências de sua criação no Reino Unido.
A encenação vai além da força carregada na narrativa em si. Um enorme bloco de sal será pouco a pouco esfarelado pelo uso de uma marreta. A cisão desse uno em fragmentos se dá no que aparenta ser o primeiro contato de Thompson com um pensamento racista escancarado. Não se trata meramente de uma reação à agressão -a marretada parece atingir mais forte na subjetividade da performer do que no sal.
Na sequência, compartilhando suas experiências no navio, blocos menores são enfileirados. Uma ponta da cadeia acabará reduzida a pó. A outra, um maciço que, ainda que golpeado, pouco se desestrutura. É um momento onde o discurso político apresenta-se de forma direta e até didática.
Ao fim de sua longa e árdua viagem, parece que a artista é confrontada com a problemática do não lugar da identidade diaspórica. Seu não pertencimento, então, se ressignifica. Na busca não só por si, mas por formas de honrar sua ancestralidade, reencontra-se com a memória de sua avó.
O sal, com sua potência cicatrizante, deixa de representar a violência e o esfacelamento gerado pelas colonizações. Ao materializar a metáfora e transformá-la em amuleto, Thompson nos lembra que é necessário seguir vivendo. E, ao mesmo tempo, constrói um pequeno monumento à memória das diásporas.

SAL.
QUANDO sex. (9) e sáb. (10), às 20h -a sessão de sábado será seguida de conversa com Ana Maria Gonçalves
ONDE Itaú Cultural – auditório, av. Paulista, 149, tel. (11) 2168-1777/ 2168-1777
QUANTO grátis; ingressos serão distribuídos uma hora antes do espetáculo, com limite de uma entrada por pessoa (e duas horas para público preferencial, que tem direito a um acompanhante)
AVALIAÇÃO Ótimo
Classificação 14 anos