A bola é redonda e, para compreendê-la não adianta separá-la em gomos e estudá-los isoladamente. Foi com essa idéia em mente, e alguns pressupostos teóricos na bagagem, que o historiador Hilário Franco Jr. resolveu estudar um fenômeno ainda desprezado pelos intelectuais – o futebol. E decidiu abordá-lo em sua totalidade. O resultado é um livro, com perdão do jogo de palavras, dos mais redondos – “A Dança dos Deuses – Futebol, Sociedade, Cultura” (Companhia das Letras. 472 págs.).

Hilário Franco Jr. é historiador especializado em Idade Média. Aposentado da USP, trabalha na École des Hautes Études, em Paris com o papa da matéria, Jacques Le Goff. Vive em trânsito entre a França e o Brasil. E o que tem a ver um medievalista, que por acaso é são-paulino, com o mundo da bola? Muita coisa. “Talvez o que me leve a estudar tanto a Idade Média quanto o futebol seja o mesmo desejo: o de ler o hoje, compreender a atualidade”, diz. Como quase tudo o que existe agora teve sua origem no mundo medieval, estudar esse passado é um pré-requisito para compreender o presente. E como o futebol é um dos mais poderosos “sintomas” do mundo moderno, passa por ele também algumas chaves de compreensão da sociedade atual.

Como aspira ser o mais completo possível, o estudo de Franco Jr. começa pelas origens quase míticas do jogo, passa pela formalização dos ingleses que lhe dá o aspecto atual e examina a sua ambientação brasileira, ainda no século 19. Refaz as várias etapas do seu exercício em Terra Brasilis, do jogo nos tempos da oligarquia à bola jogada durante a ditadura militar de 64 a 85. Avança examinando a difícil adaptação do futebol ao modelo liberal até a globalização atual. Trata o futebol como metáfora sociológica, antropológica e religiosa. E chega aos, digamos assim, fundamentos do jogo, ao examiná-lo pela ótica da lingüística, em seus alicerces, em seus materiais de construção: “O jogo é uma estrutura, é uma dinâmica”, diz.

Queixa-se de que as descrições que vê, ouve ou lê, “me dão uma fotografia, mas não o filme do jogo”. Esse jogo tão popular, do qual poderíamos dizer à maneira de Lacan que é estruturado como linguagem, parece um diálogo, um debate entre dois oponentes. Vê-lo em sua dinâmica física e simbólica, como linguagem, só pode enriquecer a nossa leitura do que se passa em campo.

E não apenas no campo. Porque não escapa ao historiador o futebol que vai muito além das quatro linhas. E envolve toda uma comunidade, a que chamamos de torcida. Ela está bem presente em “A Dança dos Deuses”. A ponto de Franco Jr. tratá-la como o que existe de fundamental na estrutura social do jogo. “As torcidas são os elementos de longa duração”, diz, usando uma terminologia própria ao historiador Fernand Braudel que, aliás, lecionou na USP. Os jogadores vão e vêm, os clubes mudam, tudo se altera rapidamente no mundo da bola. A torcida permanece igual a ela mesma, geração após geração. Vai ao estádio atrás dos seus ídolos, xinga o juiz e vaia o jogador “mercenário”.

Mas, diz Franco Jr., não se pode esperar que assim permaneça, indefinidamente. Essa transformação rápida do futebol se não for revertida, deverá, a médio e a longo prazo, provocar alterações na relação simbólica entre times e torcidas. A evasão precoce dos ídolos é um dos fatores, talvez o mais notável deles.

O historiador cita o caso do atacante Alexandre Pato, de 17 anos que acaba de ser negociado com o Milan. Revelado pelo Internacional de Porto Alegre, Pato deixa o clube sem ter jogado um único Gre-Nal, o clássico de maior rivalidade em seu Estado. “Esse tipo de fenômeno pode causar um esfriamento de relações, a exemplo do que já acontece com a seleção”, diz.