Arquivo Pessoal – Paisagem que desperta a memória afetiva do inconsciente coletivo

A visão do peixe inerte e escamas iluminadas na areia, o cheiro de maçã e suco da lancheira, os acordes de uma música, o frio no estômago ao reencontrar alguém, todo esse conjunto de situações nos reportam à lembranças, que nos causam sensações físicas e emocionais. Essa espécie de revival mental da recordação, pode ser uma busca de prazer imediato, um quadro pintado de forma inconsciente, que a princípio pode nos levar ao que acreditamos ter sido uma realidade prazerosa. 

Há também essa memória afetiva do inconsciente coletivo, cultuada por hábitos comuns de uma infância mais ligada aos encontros familiares, seus costumes e repertórios. Quando essa lembrança surge, como o toque de uma campainha, se ativam sensações peculiares a cada um. O cheiro de um perfume, comida e toda a história que leva ao “implante” dessa memória, cores, sons e assim por diante.

Do ponto de vista positivo do start dessas lembranças, as alegorias que criamos para manter a memória seguem um roteiro bem amarrado de prazeres. A casa azul da foto, seu estilo, o cachorro no portão, muro que reporta uma época, todo o cenário cria para certa geração, algo como “já estive num lugar assim” e lá se faz a viagem mental para encontrar esse dado no arquivo. Pode, nesse caso, levar ao reconhecimento de relacionamentos que se tinha com pessoas tidas como especiais, brincadeiras, liberdades e pequenos atos de leveza.

Qual seria o dispositivo para tornar a memória afetiva, uma vez que afeto se origina daquilo que me afeta, uma mudança simultânea do corpo e da mente, segundo definição de Spinoza. Então, a partir disso, a memória afetiva é a construção de algo que nos afeta e cria um movimento, mas a lembrança que emerge é aquela que nos agrada.

A sensação iminente elimina a dor e então o que pode estar velado não aparece. Não quero aqui destruir a crença de que memória afetiva seja algo bom de recordar, de sentir novamente, apenas colocar um novo olhar, talvez enviesado, que ali pode estar um ponto nebuloso.

A minha história mais incrível de memória afetiva, está no meu primeiro entendimento sobre a morte. Ao caminhar pela praia com apenas quatro anos, meu pai e um amigo seguiam atrás conversando animadamente, então eu vi um peixe inerte na areia. As escamas brilhavam e faziam um prisma multicolor. Eu flexionei os joelhos e  com os dedinhos toquei no peixe. Achei estranho ele não se movimentar. Toquei novamente e meu pai quase tropeçou em mim. Perguntei: “por que o peixe não se mexe?”. Meu pai respondeu com naturalidade, “ele morreu”. Naquele momento percebi que coisas vivas morrem, e a morte foi transformada numa imagem bonita, poética até.

O quanto transformamos sentimentos confusos em algo mais alegórico, o que está submerso na memória. Meu pai não lembra da cena, mas me disse que era uma época em que eu estava longe de minha mãe, em tratamento de saúde noutra cidade. Todo prisma que eu vejo formado em qualquer superfície, eu lembro da luz sobre o peixe, do meu olhar para o peixe e da inconformidade sobre a finitude. 

*Sugestão da semana: O documentário Explicando a mente https://www.showmetech.com.br/netflix-explicando-a-mente-desvenda-cerebro/

 

*Ronise Vilela é criativa de conteúdos de Comunicação Afetiva e Terapeuta.

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