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Amanda desce as escadas e vai até o porão buscar uma ferramenta para consertar seu armário. O ambiente havia sido planejado para se tornar um estúdio de artes, com um canto destinado para almofadões descolados, a ouvir música com amigos, talvez demonstrar uma coreografia desconexa ou apenas ser um canto do nada.

Ao acender a luz, percebeu que a janela estava escondida por um colchão deixado por alguém da família, em caráter temporário. Calculou mentamente e estava ali há quase três anos.

Para não se angustiar, sabia que a caixa de ferramentas estava na terceira gaveta de uma antiga cômoda e sairia dali, com a promessa de que na próxima semana faria uma limpeza geral. Ao abrir a segunda gaveta, a primeira caiu. Ela estava ali por um apoio da gaveta antecessora e várias caixas com documentos, cartas e até fotos caíram no chão.

O impulso de Amanda era simplesmente juntá-las de qualquer forma, uma vez que fez a promessa mental de arrumar todo o ambiente. E assim o fez, até que boletins da época de estudante caíram um a um, em ordem. Um suspiro e uma decisão: juntar, ignorar ou se render a uma leitura?

Passadas duas horas, Amanda leu os boletins dos tempos escolares e viajou dos 15 aos 17 anos. Surgiram sorrisos de aventuras amorosas, sentidos de raiva de dedicação fortuita à algumas amizades, choro de pessoas queridas que já não viviam mais. Ao se recompor daquele cenário, ela foi tomada pela dúvida: se guardava tudo aquilo, dispensava ou transformaria em arquivo digital.

Ao retornar para a sala, sem a ferramenta, decidiu limpar sua vida digital, parecia mais fácil e prática. Colocou uma garrafa de vinho reutilizada como garrafa de água sobre a mesa, seu copo favorito que remete a lembrança de um show curtido e abriu os emails; aos enviados, favoritos, com pastas pessoais, de trabalho, sem nome. Cansou! Nisso, percebeu a vibração do seu celular. Vinte mensagens. Respondeu a metade, ignorou as demais, aproveitou e viu o saldo bancário, voltou para a notificação de um amigo: um meme, encaminhou para três contatos. Retornos. Risos e emoticons. Mais água no copo. Bateu a fome. Sem comida no armário cheio. Pedir pelo delivery. Qual aplicativo, qual comida? Pizza é mais fácil. Acender as luzes. Aviso na agenda sobre compromisso de amanhã. Ver se a tabela para a reunião virtual está completa. Abre o documento, ajusta. Bateria do celular acabando. Chega a comida. Come sobre o notebook e as mensagens chegam. Amanda resolve ignorar e continua  a limpeza virtual.

A tarefa se torna chata, coloca uma música do aplicativo, vê que alguém comentou. Responde. Novo seguidor. Interage. Abre caixa de conversa. Nem notou que comeu a metade da pizza. Tem louça na pia. Era dia de lavar o cabelo, amanhã precisa acordar cedo para a reunião. Não consertou seu armário, não arrumou o porão, não fez a limpeza virtual, mas ok, estava com a planilha em dia para a reunião.

Toda vez que precisamos tomar uma atitude diante das nossas limpezas físicas, emocionais, virtuais, nos deparamos com o Universo que criamos e nos apegamos. Não criamos tudo do dia para a noite, então não precisamos descriar nesse tempo. Esse “lixo” acumulado que formam nossas memórias, precisam de uma varredura honesta de nossa parte, ou quando nos dermos conta, seremos mais uma Amanda a fazer uma tarefa para um único propósito, uma reunião do dia seguinte.

*Ronise Vilela é criativa de conteúdo e desenvolvedora de Comunicação Afetiva. 
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