SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em tratamento médico na Clínica São Vicente, no Rio de Janeiro, a cantora Miúcha imaginava a maca do hospital como um elefante indiano que a puxava para exames sofisticados e depois a devolvia ao leito, todos os dias. Daí passava a descrever, como ficção científica, os raios vermelhos das máquinas modernas.

A recriação da dor, desnaturada até virar alegria, era sua medida de poesia.

Uma das vozes centrais da geração posterior à bossa nova, Miúcha morreu nesta quinta (27), aos 81 anos, no Hospital Samaritano, no Rio, pouco tempo depois de saber da volta de um câncer.

Filha do historiador Sérgio Buarque de Holanda, que a estimava como a filha mais próxima dos seus interesses culturais, ela era a memória da família e da música brasileira na segunda metade do século 20.

Na adolescência, uma tia lhe deu três opções de presente: um colar de pérolas, uma máquina de escrever ou um violão – ao escolher o último, a garota Heloísa determinou não apenas o seu futuro na música, mas influenciou o destino dos irmãos Chico, Cristina e Ana.

“A bossa nova foi um deslumbramento: bim, bom, bim, bom. De repente veio uma coisa mais leve, eu achei muito encantadora. O que eu sabia de harmonia não dava mais pra bossa nova. Chico era melhor do que eu na batida. Eu era ligada na harmonia. Ficávamos ligados no violão tentando decifrar aquela maravilha”, recordou-se a artista, em outubro.

O poeta Vinicius de Moraes, amigo de seu pai, foi um dos seus mestres no instrumento, nas visitas à casa no bairro do Pacaembu, em São Paulo.

Há duas semanas, numa suíte do hotel Emiliano, onde resolveu descansar do tratamento médico, Miúcha passou a tarde observando a praia de Copacabana, enquanto lembrava, sem fiapos de tristeza, a sua trajetória musical. “A minha maior energia criativa foi com Tom Jobim”, ela dizia.

O casamento com o músico João Gilberto, iniciado em 1965, desfez-se no início dos anos 1970, mas permaneceu a vida partilhada.

Falavam-se duas ou três vezes por dia, cantavam juntos e dividiam notícias do mundo e da filha Bebel Gilberto.

Há dois anos, com a filha do lado, os dois gravaram num celular a canção “Volta”, de Lupicínio Rodrigues, registro até aqui inédito.

“Temos um pacto de companheirismo. Não mudou nada desde que nos separamos”, afirmou Miúcha, antes de apontar, na praia, um vendedor de picolé vestido de beduíno. “Eles se vestem de tudo. Ontem havia um índio com o isopor.”

No celular, ela abriu a foto do irmão Chico com o papa Francisco. “Mamãe deve estar numa felicidade porque Chico encontrou o papa!”, sorriu Miúcha, lembrando-se das visitas da família – liderada pela matriarca, Maria Amélia – à casa de veraneio do papa, em Roma, nos anos 1950. “Roma é a cidade onde mais amei viver”, comentou a cantora, leitora de um roteiro de lugares misteriosos da capital italiana, deixado ao seu alcance.

Em 1975, Miúcha estreou pela Philips com o compacto duplo que trazia “Correnteza”, de Tom Jobim e Luiz Bonfá, “O que Quer Dizer”, de Péricles Cavalcanti, e o início da parceria de João Donato com os baianos Caetano (“Naturalmente”) e Gilberto Gil (“Lugar Comum”).

Gravou ainda naquele ano seus vocais no disco “The Best of Two Worlds”, de Stan Getz e João Gilberto, e tempos depois registraria os dois LPs clássicos com Tom Jobim, lançados em 1977 e 1979. “Outros Sonhos” (Biscoito Fino), de 2007, foi seu último álbum de estúdio.

“Primeiro teve o disco do Stan Getz com João. No mesmo ano em que eu estava gravando, o Tom apareceu. Nós já éramos amigos de Nova York e do bar Veloso. Tom estava trabalhando há uns dois anos no Boto [título provisório do álbum “Urubu”]. Ele me chamou pra fazer o vocal”, disse Miúcha.

“Minha vocação é ser madrinha. Eu apresentei João Donato a Caetano e Gil. Conheci Donato nos Estados Unidos. Quando Donato voltou, promovi um encontro lá em casa. Desse encontro já saíram músicas para o meu disco. Caetano fez ‘Naturalmente’. Donato fez ‘Lugar Comum’, Gil botou a letra. Depois, apresentei Chico a Guinga, que foi uma das grandes surpresas musicais de minha vida.”

Seu último show individual aconteceu em São Paulo, no dia 19 de outubro, no Sesc Pompeia – mas a derradeira subida ao palco viria no dia 21, no Auditório Ibirapuera, ao participar do lançamento do disco “Canto Guerreiro – Levantados do Chão”, do cantor Renato Braz, com quem dividiu a canção francesa “Ne Me Quitte Pas”.

No final daquele mês, a má notícia da metástase do antigo câncer de pulmão não abalou sua alegria.

Descrevia em detalhes os cuidados de Chico e da irmã Ana, a chegada de Bebel, as visitas dos amigos Kati de Almeida Braga, Ruben e Georgiana de Moraes.

Orgulhava-se do talento do sobrinho-neto Chico Brown, a quem legaria sua flauta, comprada por Tom e Claus Ogerman. Na primeira internação, levou na mala somente roupas e livros de Rubem Braga. E gostava de contar uma recente declaração de amor de João: “Meu maior medo é você partir”.

“Minha vida está tão boa que não vale a pena morrer”, concluiu Miúcha, dez dias antes de ser levada, em definitivo, pelo elefante indiano.

O velório e o enterro devem acontecer nesta sexta (28), no cemitério de São João Batista, em Botafogo, no Rio.

REPERCUSSÃO

Ruy Castro, escritor e colunista da Folha de S.Paulo

“Miúcha tinha uma qualidade rara entre cantoras: sabia exatamente o que estava cantando. Isso a fazia ir mais longe do que outras que podiam ter mais dotes vocais, mas não lhe chegavam nem perto como intérpretes.”

Cida Moreira, cantora

“Eu a conheci, bebemos juntas em tempos memoráveis no Rio de Janeiro. [Era] doce, leve, engraçada. Não quero dizer nada, o silêncio se impõe, majestoso.”

Daniela Mercury, cantora

“A sua música faz parte da minha vida.”

Marcelo Calero, ex-ministro da Cultura e deputado federal eleito pelo Rio de Janeiro

“Uma perda irreparável. Descanse em paz.”