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(Marcello Casal Jr/ABr)

O julgamento sobre o que fazer com a herança digital, que começou no STJ (Superior Tribunal de Justiça), tem movimentado uma discussão sobre os direitos à privacidade da pessoa morta e de herança.
A corte analisa um pedido para acesso a bens digitais, no caso, um computador, de uma pessoa já morta. Em sessão da terceira turma do STJ em 12 de agosto, a ministra Nancy Andrighi votou pela criação da figura de um inventariante digital, que acessaria a máquina e faria uma lista para o juiz.

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O magistrado, então, determinaria o que poderia e o que não poderia ser repassado aos herdeiros. Segundo a ministra, esse caminho evitaria violações da personalidade do morto ou de um terceiro, cujos bens digitais estejam nesses dispositivos.

“É uma experiência para a qual não estamos preparados ainda, porque é uma novidade. O direito digital interferiu ativa e violentamente sobre o Código de Processo Civil”, afirmou a ministra.
No caso em discussão no STJ, a mãe de Anna Carolina Trench Agnelli tenta autorização da Justiça para acessar um computador dela. Anna Carolina morreu em 2016 em um acidente de avião que também matou seu irmão, seu pai, o ex-presidente da Vale Roger Agnelli, e a mulher dele, além do genro do executivo, da namorada do filho e do piloto.


Delegar a decisão ao juiz do que pode ou não ser transmitido pode ser um problema para os direitos dos herdeiros, afirma a advogada Silvia Marzagão, sócia do escritório Silvia Felipe Marzagão e Eleonora Mattos Advogadas. Para ela, discussão do tema, ao menos com a abrangência que deve ocorrer no STJ, é inédita.


“É a primeira vez que se analisa mais a fundo o destino dado a esse material que se convencionou de chamar de herança digital, esses bens de natureza digital.” Por isso, diz a advogada, é necessária uma classificação do que é patrimônio, como carteiras de bitcoin, e do que é pessoal, como correspondências de email, fotos e mensagens de texto.


Os perfis em plataformas de rede social adicionam mais uma camada ao problema, segundo Alexandre Kassama, tabelião e diretor do Colégio Notarial do Brasil em São Paulo. “A discussão não acho que é tanto sobre o digital ou não, mas sobre as plataformas confundirem o que é privacidade e o que é patrimônio. O grande lance é elas venderem como vida privada algo totalmente comercial.”

Herança digital: os casos de Gugu e Marília Mendonça


Os exemplos citados são os destinos das contas de personalidades como Gugu e Marília Mendonça, com milhões de seguidores, e como definir o destino desses perfis, que ainda podem ser rentáveis. No caso da cantora, morta em 2021, a disputa também envolve músicas não lançadas.


Para ele, soluções anteriores e já existentes poderiam dar conta de questões apresentadas pela ministra no julgamento do STJ, que foi interrompido após pedido de vista do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, que citou a inovação na ideia apresentada.


“Não tem função em se criar mais uma figura só para o direito digital. As figuras do mundo analógico podem lidar com isso conforme a questão se torne uma preocupação dos testadores”, diz Kassama. Ele lembra que o problema também já existia no mundo analógico, e cita o lançamento, no ano passado, de uma obra inédita do escritor Gabriel García Marquez após decisão de seus filhos.


Marzagão concorda que a criação de mais uma figura pode tornar ainda mais demorados -e custosos- os processos de inventário. Ela, que defende a transferência total do patrimônio digital para herdeiros, lembra que essa medida é diferente de soluções que já existem em alguns sistemas operacionais de legar a um herdeiro o destino da conta de uma pessoa que morreu. “Você dá o destino que falei ou vira um memorial ou apaga a conta. Mas não pode ver inbox e movimentação ou continuar usando.”

A solução seria usar peritos ou oficial de Justiça, conforme determinação do juiz -o que já acontece nesses processos atualmente, defende Paulo Doron, professor da FGV Direito SP.


“Isso é uma providência muito corriqueira prevista no Código de Processo Civil. E é óbvio que um lugar pode ser interpretado como um lugar civil e como um lugar virtual.” Ele diz que a ministra pode ter tentado inovar, já que não há jurisprudência sobre o tema, mas que seria possível usar estruturas existentes.


Para Kassama, as mudanças provocadas pelo acesso generalizado à internet em décadas recentes mostram agora esse tipo de impasse. Ele avalia que a sociedade também vai se adaptar, inserindo essas preocupações nos testamentos.


A ministra Nancy também disse ter analisado projetos de lei apresentados no Congresso Nacional e que nenhum deles explicava como o juiz deveria proceder nesses casos. O mesmo, segundo a magistrada, vale para o novo Código Civil, cujo projeto está no Senado aguardando despacho.


Segundo Doron, os textos de herança digital e de direito digital apresentam, cada um, regras parecidas para esse tipo de sucessão, o que já pode gerar problemas de sobreposição e não resolvem a questão.
Uma regra trata apenas de mensagens privadas do autor da herança e proíbe o acesso a ela por herdeiros. Também há uma previsão de que o autor do testamento deixe essas regras expressas sobre as mensagens, mas não cita outros tipos de mídia.


Outro ponto criticado por Doron é a falta de menção a patrimônio digital armazenado em memória física. “O novo código se preocupa com o que as pessoas guardam na nuvem, mas não com o que tem nos próprios HDs.” Se fosse aprovado como está, o projeto ainda exigiria uma decisão do Judiciário. Já os defensores da proposta têm defendido que ela ainda passará por debates no Congresso.