
Crianças constroem robôs. Projeto inspirado no trabalho de Seymor Papert
Outro dia rolou um experimento interessante aqui em casa. Meu filho ganhou, quando ainda nem tinha um ano, um violão de brinquedo de presente. Ele foi crescendo e passou a adorar brincar com aquilo. Usava como instrumento de corda e de percussão. Gostava de puxar as cordas e ver que o barulho muda de uma corda para outra ou de acordo com a força que ele usava.
Bem, o violão sofreu muito na fase “pegar e jogar no chão”, “jogar escada abaixo” e bater nas coisas e não sobreviveu. Mas o gosto pelo instrumento ficou e o baixinho volta e meia perguntava do violão. Então lá fui eu comprar outro.
Procurei, procurei e não achei igual ao que ele tinha. O mais próximo do que chamamos de violão era uma versão da Galinha Pintadinha, que além de violão – anunciava a embalagem – tinha quatro músicas da galinácea que tocavam quando se aperta um botão no corpo do instrumento. Acabei comprando e dei para ele brincar.
No começo a brincadeira foi igual das outras vezes. Tocar nas cordas, bater no corpo do violão para ouvir o barulho que faz. Até que ele descobriu o tal botão. Apertava o negócio e tocava uma musiquinha. Apertava de novo, outra musiquinha.
Foi notável a mudança na brincadeira. Meu filho, que adorava andar com o violão pela sala mostrando para mim os barulhos que ele fazia, falando naquele idioma delicioso de bebê, ficou sentado no chão vidrado no pedaço de plástico que tocava musiquinha. Sem sorrir, sem falar. Só apertando um botão.
O violão da Galinha Pintadinha é um exemplo clássico do que podemos chamar de barateamento da tecnologia. É tão barato fazer um chip hoje que dá para colocar um num brinquedo de plástico de R$ 40 pra que ele toque infinitas vezes a mesma musiquinha. As lojas de brinquedos infantis estão cheias de bagulhos com a mesma lógica: aperta-se um botão e o troço acende, pisca, faz barulho.
O problema é que apertar botão para tocar musiquinha não desafia o cérebro do meu filho. Ele tem menos de dois anos. Nesta fase as crianças precisam de pequenos desafios diários para continuar evoluindo física e intelectualmente. O que o botão faz é entreter ele. Só isso. É diferente de um instrumento de corda cujo tom muda de acordo com o jeito, a força e o local no qual a criança puxa a corda.
Se você for ler alguns teóricos da educação, como Maria Montessori, Lev Vygotsky, Jean Piaget (gente que estudou e pensou sobre como a criança aprende e se desenvolve) vai ver que eles apontam, de uma forma ou outra, a experiência como parte importante da formação humana. Desde cedo a criança desenvolve um processo científico próprio. Ela joga o objeto no chão e ouve um barulho. Causa e efeito.
Mas o que isso tem a ver com o iPad?
Na década de 1970, o matemático Seymor Papert começou a falar sobre o computador como meio. Algo que poderia potencializar, no ambiente escolar, as possibilidades de experiências a serem vividas pelas crianças. Isso permitiria que elas aprofundassem essas experiências, formulando conceitos e estabelecendo relações que iriam, eventualmente, ajudá-las a compreender ideias da matemática, física. Do currículo formal, enfim.
Papert é um cara bacana que trabalha no MIT (Massachusetts Institute of Technology) e está por trás de vários projetos educacionais interessantes, como o Um computador por aluno, que desenvolveu o notebook de 100 dólares. Também é dele o projeto do Lego Mindstorm que permite o desenvolvimento de robôs a partir de blocos de montar. E a linguagem Logo, uma linguagem de computador para crianças.
O problema, para simplificar um pouco, é que no meio do caminho surgiram pessoas como Steve Jobs e Bill Gates, que ajudaram a criar e popularizar o computador pessoal (antes disso os computadores eram grandes máquinas de uso restrito a pesquisadores e grandes empresas).
Não me entendam mal. Não estou demonizando a Apple e a Microsoft. É que o modelo de negócio do computador pessoal é o da popularização maçica (e, veja bem, é isso que depois permitiu a criação dos tais notebooks de 100 dólares). Para fazer isso o computador tinha que deixar de ser coisa de nerd e hobistas e virar um eletrodoméstico.
Como Jobs conseguiu isso? Ele se apropriou da ideia da interface gráfica, ou seja, da ideia do computador se traduzir para o usuário. Interface gráfica é isso aí na sua tela do computador que divide as informações em diferentes janelas e que te diz que dá para fechar um programa clicando no X.
A interface gráfica permitiu que as pessoas pudessem usar o computador sem saber programar. Porque programar é justamente saber dizer para o computador o que é para ele fazer. Com as janelas e ícones você pode fazer isso com seu mouse, sem digitar uma linha de código.
Mas Jobs foi além disso. Ele queria criar a experiência perfeita entre usuário e máquina. Por isso os produtos Apple são fechados, ou seja, não é qualquer que pode desenvolver programas e aplicativos para o seu iPhone, Mac Book ou Apple TV. A Apple faz isso para evitar complicações na relação da máquina com o código (traduzindo: para não travar tudo).
Só que o sistema fechado é um sistema que permite muito pouca interação. Sabe o que é interação? Interação é uma conversa. Uma conversa só existe quando uma mais pessoas trocam informações e a narrativa muda a partir dessa interação.
Traduzindo: sabe aquela sua conhecida que pergunta sobre você e quando você vai responder ela já te interrompe e começa a falar dela? Então, isso é um monólogo. Tem duas pessoas, mas não importa o que você disser, a moça vai continuar falando do que ela quer falar. Mas quando você está num papo com as suas amigas é diferente, né? Uma fala uma coisa, a outra dá conselhos, a terceira lembra de uma história parecida. Isso é um diálogo. De repente você até tinha algo em mente, mas o que você fala é influenciado pelo o que elas falaram.
Voltando para o violão da Galinha Pintadinha: quando meu bebê brinca com as cordas, é um diálogo. Quando aperta o botão, ele é um monólogo. O que é mais rico, do ponto de vista intelectual?
Mas o iPad não é interativo? Não tem internet? Sim, há a possibilidade de interatividade, mas muitos apps feitos para tablets privilegiam a mentalidade fechada. Essa lógica vê o computador como fim. Você é um clicador de botões. Só isso.
É muito comum a gente ver essa mesma mentalidade em softwares supostamente educacionais (dica: nem tudo que se diz educacional é educacional) e programas de implantação da informática nas escolas. A máquina está lá como fim, não como meio.
É uma perda tremenda. O computador pode ampliar o potencial da mente humana. Ele nos permite fazer conexões, simular experimentos. Mas se a gente for trabalhar com a mesma lógica linear e engessada não há ganho na troca da caneta pela tela brilhante.
Para mim, como educadora, o chato dessa história toda é que, ao privar as crianças de experiências reais para ficar apertando botões (e daí não falo só do iPad, mas de todos os brinquedos que funcionam dentro dessa lógica) nós estamos treinando elas para serem usuárias. Elas serão muito boas em destravar o iPhone e clicar nas fotos. Mas não vão se apropriar da tecnologia para ampliar seus próprios horizontes.
O resultado disso é que temos uma geração supostamente digital num mundo no qual é possível estudar em Harvard sem sair do quarto. Dá para criar um robô seguindo tutoriais no Yout Tube e comprando peças baratas. O problema é que a internet não é como a televisão, que nos oferta um cardápio pronto. Ela é reativa. Só dá para achar Harvard se você digitar Harvard no Google (ou algo assim).
Se o vírus da descoberta não contaminou a criança durante a infância vai ser difícil que ela vá despertar para esse potencial mais tarde na vida.
O próprio Jobs é consequência de uma cultura muito mais “mãos à obra” do que a que a empresa dele prega. Antes de criar a Apple, ele se juntou com um amigo, Steve Wozniak, e inventou um jeito de fazer ligações de longa distância de graça. Eles viviam numa região no Norte da Califórnia que nós conhecemos como Vale do Silício e que surgiu atrelado ao um movimento da cultura hacker que é bastante popular por lá.
O que é cultura hacker? É que, grosso modo, se apropriar da tecnologia para criar novas aplicações ou resolver problemas de maneira não tradicional. Muitas das invenções que usamos hoje e achamos revolucionárias não foram apresentadas num Power Point e sim criadas em garagens a partir de partes de outros equipamentos.
O seu filho pode saber destravar o iPhone desde bebê, mas dificilmente ele vai desenvolver a criatividade e a independência intelectual necessária para ser original se você o mantiver sempre atrelado a máquinas que o treinam para ser um apertador de botões.
O que fazer então? Dá para aprender com o Papert: o computador está aí para ampliar o nosso raio de ação. Somos mestres dele, não o contrário. Então temos que nos permitir explorar esse potencial.
Atualmente há todo um movimento social que prega justamente isso: que a gente volte a criar com as próprias mãos. Só que ao invés de montar móveis, como no passado faziam os adeptos da bricolage, hoje podemos usar impressoras 3D que nós mesmos montamos para imprimir jogos que desenvolvemos (já pensou que dá para criar uma versão personalizada de War?).
Quanto ao meu filho, resolvi o meu problema com a Galinha Pintadinha de forma simples: peguei uma chave de fenda, abrir o violão e tirei a pilha. Pronto. Agora o violão voltou a ser um instrumento musical no qual meu filhote toca suas primeiras notas balançando o corpinho.