Trazer questões críticas ao cenário da Ressurreição pode nos levar a um terreno instável no desafio entre Fé e Razão. (Imagem: Pixabay) 

A narrativa deste Domingo de Páscoa parece desafiadora à razão. Em João 20,1-9, a “boa nova” pode trazer confusão, incompreensão e pelo menos um toque de medo aos desavisados. Como toda uma população foi capaz de acreditar nessa história tão absurda, de um homem flagelado e morto, que retornou à vida? Como nós mesmos, em pleno século XXI,  ainda aceitamos essa história como um fato verífico? O que houve na Palestina de então, para que as pessoas ficassem ao lado dos discípulos e acreditassem no Cristo Ressuscitado?

O Frei Vicente Artuso, quanto a esse tema, comenta: “Talvez a expressão “absurdo da fé na Ressurreição devesse ser explicada. Tem o grupo dos crentes e não crentes. Assim, por exemplo, para os judeus a cruz foi uma loucura. Já para os gentios, estultice. E, para os cristãos, é poder e sabedoria (1Cor. 1). Exemplo disso foi quando Paulo falou da Ressurreição e um grupo da praça de Atenas virou as costas, enquanto alguns acreditaram (At 17)”, sinaliza o biblista que é professor de Sagradas Escrituras na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e no Studium Theologicum Claretiano de Curitiba. 

Para reforçar ainda mais a questão, vamos permitir que também os apóstolos Pedro e Paulo nos conduzam à resposta. Ou melhor dizendo, à hermenêutica da notícia da Ressurreição. Afinal, para entender esta passagem, nos parece oportuno experienciar seu contexto aos olhos da fé, mas também fundamentados no que se apresenta no capítulo 10 dos Atos dos Apóstolos.

O testemunho do Ressuscitado e a vida de Fé

Nos Atos dos Apóstolos, Pedro descreveu cuidadosamente a morte de Jesus e o fato de que Deus o ressuscitou “e concedeu que fosse visível, não a todos, mas [a nós], às testemunhas escolhidas por Deus”. Pedro pregou isso na casa do centurião romano, Cornélio, quando estava prestes a batizar os primeiros cristãos. E, assim, a fé passou de pertencer a um pequeno grupo do povo escolhido para abraçar este novo testemunho de vida, de “todos os que crêem em [Jesus de Nazaré]”.

As homilias anteriores de Pedro citavam as tradições de Israel; agora, entre os gentios, ele simplesmente proclamava que Deus ungiu Jesus com o Espírito Santo –  e que Jesus andou por aí fazendo o bem. Para um cético, esse é um argumento terrivelmente frágil. Na verdade, Pedro estava dizendo: “Todo mundo sabe que Jesus morreu. E eis que alguns de nós tiveram acesso a vê-lo vivo novamente!” 


Por que alguém acreditaria nisso, racionalmente? 

Por que os judeus aceitariam ser excomungados de suas sinagogas e os romanos arriscariam o escárnio de seus sofisticados colegas antijudeus com base em tais declarações feitas por ex-pescadores ou cobradores de impostos – e até mesmo por mulheres? Justamente aquelas minorias, que como nós, foram frequentadores de igrejas durante a maior parte de nossas vidas. A fé na Ressurreição nos parece algo óbvio pela tradição, talvez como uma criança que assume que o sol nasce pela manhã. É parte de nossa visão de mundo muitas vezes inquestionável. De fato, trazer questões críticas reais para este cenário da Ressurreição pode nos levar a um terreno instável ao desafio entre Fé e Razão. 

Tem a ver com o que Pedro e Cornélio testemunhavam. Na casa de Cornélio, Pedro compartilhou da presença do Espírito Santo e, por isso, deu o passo inédito e escandaloso de batizar os gentios. Ao escolher esta cena para nossa liturgia pascal, a Igreja nos lembra que o discipulado não flui de Dogma ou Teologia e não tem nada a ver com etnia, status ou gênero – temas tão discutidos ultimamente em nossa sociedade. Aliás, cabe lembrar que o discipulado cristão é verdadeiramente católico, ou seja, universal. O ensino e a ação de Pedro afirmaram a verdade de que o discipulado cristão brota de uma experiência do Espírito de Deus como revelado em Jesus.

E neste ponto, Paulo nos ajuda a melhor compreender o contexto da Ressurreição. Na Carta aos Colossenses, ele nos diz: “Então, se você foi ressuscitado com Cristo, busque o que é de cima. … Pois vocês morreram, e sua vida está escondida com Cristo em Deus”. Paulo está convidando os colossenses a relembrarem uma experiência pessoal – a metanoia, a conversão e uma nova visão após a qual nada poderia ser o mesmo. Sua conversão e compromisso cristão não resultaram de ouvir um argumento racional ou uma proposta vantajosa; fluiu de uma experiência compartilhada da graça/Espírito de Deus trabalhando neles e entre eles, convencendo-os além da razão de que Jesus era o Messias.

A fé como experiência de maturidade humana e comunitária


Tanto para os colossenses quanto para Cornélio, a experiência do Cristo ressuscitado e da graça do Espírito foi como a experiência dos primeiros discípulos que aceitaram o chamado para seguir Jesus onde quer que ele o conduzisse. Embora possa ter começado com uma experiência avassaladora de fé e esperança, tornou-se real ao longo de uma série de momentos de discernimento ao longo da vida, seguidos de perguntas, tentações, fracassos e novos compromissos.

Isso nos ajuda a apreciar o raciocínio intrigante para o uso da Igreja dessa narrativa complexa da Ressurreição meditada neste domingo de Páscoa. O Evangelho inconclusivo de hoje nos obriga a lembrar que a fé é sempre um risco. A verdadeira fé não teme perguntas ou dúvidas porque sabe que Deus é maior que nossa imaginação. A fé nos convida a um compromisso que não oferece nenhuma apólice de seguro, exceto aquela que vem de experiências de graça que são tão fortes e certas quanto inexplicáveis.

O Evangelho de hoje nos convida a acompanhar Pedro, João ou Maria durante as primeiras horas da primeira Páscoa, quando suas certezas sobre a morte e o fracasso foram questionadas. Eles se deixaram confundir. Eles não sabiam as respostas, mas permitiram que seus corações e mentes se abrissem.

O plano de Deus em Jesus é muito maior do que nossa imaginação ou que nossa capacidade racional possa sugerir. Que nesta Páscoa, após termos passado pelas complexidades de uma pandemia que nos recordou tanto da iminência da morte, não tenhamos medo de enfrentar o túmulo de velhas certezas e ficar completamente confusos e, naturalmente, até com um pouco de medo em relação à vida e às coisas de Deus.

A Páscoa é a representação de uma passagem. De uma velha vida, para uma vida plena. E ela nos revela o desejo de Deus de transformar nossas dúvidas, preocupações e medos em experiências extraordinárias do Espírito. O plano de Deus é que isso aconteça de novo e de novo, levando-nos a “ir por aí fazendo o bem”, exatamente como Jesus fez. A alegria da Ressurreição nos convida a levar paz, reconciliação e justiça aos sofredores e oprimidos, conforme disse o Papa Francisco em sua homilia de 16 de abril, durante a Vigília Pascal na Basílica de São Pedro. “Façamos Jesus, o Vivo, ressuscitar de todos os túmulos em que o selamos. Vamos trazê-lo para nossa vida cotidiana: por meio de gestos de paz nestes dias marcados pelos horrores da guerra, por atos de reconciliação em meio a relacionamentos rompidos, atos de compaixão para com os necessitados, atos de justiça em meio a situações de desigualdade e de verdade no meio da mentira. E, sobretudo, através de obras de amor e fraternidade”, disse.

Para os dias de hoje, a sabedoria popular pode esboçar a métrica do Evangelho de Páscoa e das palavras do papa: “é necessário fazer o bem, sem olhar a quem”.