A religiosidade popular brasileira possui elementos sociais, folclóricos e mesmo políticos, mas nenhum é superior à fé, que supera as limitações teológicas. (Imagem: Pixabay) 

O sincretismo é um fenômeno universal que ocorre em diversas realidades e aspectos culturais, não apenas na religião. Na acepção mais simples aplicada ao campo religioso, trata-se de uma combinação harmoniosa de práticas religiosas provenientes de religiões diferentes, sendo que a multiplicidade delas é fato tão antigo quanto a humanidade. Mas há um outro modo de considerá-lo, enfatizando mais o aspecto antropológico, considerando o sincretismo como uma questão de leitura do modelo da realidade quanto à procura e à oferta, aos bens de mercado.

Essa teoria foi desenvolvida sobretudo pelo sociólogo da religião Max Weber, enfatizando sobretudo a questão do institucional e do não institucional na religião. Um exemplo para ilustrar essa questão, é o fato de que o catolicismo imposto pelos portugueses já tinha influências míticas e pagãs. O contato com as religiões indígenas e africanas acrescentou-lhe idéias supersticiosas, crenças mágico-fetichistas e animistas. A obrigação que os africanos tinham de se converter ao catolicismo, coisa que eles souberam simular muito bem, o contato com a religião indígena e a pouca instrução religiosa dada aos caboclos, possibilitaram a coexistência de muitos elementos religiosos diferentes, os quais se manifestavam não apenas no culto mas em toda expressão religiosa popular que formou a cultura religiosa do povo brasileiro.

Cultura popular e religiosidade

Exemplos desse sincretismo podem ser as três grandes manifestações culturais dos brasileiros: o carnaval, o futebol e a religião! Na versão popular, são resultado, ou usam elementos sincréticos. O carnaval é ligado ao batuque, às danças indígenas, enfeites… além de ter raízes também nas saturnálias, festas orgíacas pagãs em homenagem a Saturno. O futebol envolve uma grande paixão, sendo acompanhado de promessas, peregrinações, benzimentos e trabalhos de despachos. A religião popular é também mesclada de sincretismo como mistura de ritos e práticas as mais diversas, algumas englobando orações católicas, ritos mágicos e fetichistas…

Em geral as rezadeiras e benzedeiras, mesmo empregando diversos ritos, se sentem plenamente católicas e não podem ser consideradas diferentemente disso. Na Bahia, por exemplo, inúmeras Mães de Santo se sentem católicas praticantes e impelidas a participar com igual respeito, devoção e recolhimento do candomblé e da missa. Quem de nós ousaria julgá-las ou reprová-las? Em Salvador, por exemplo, inúmeras mães de santo são católicas fervorosas, sem que se possa recriminá-las por isso, pois o seu sentimento religioso e a sua fé são simples e puros, embora do ponto de vista oficial/doutrinário isso seja contraditório e inaceitável, uma vez que “não se pode servir a dois senhores”, conformem apontam as escrituras, que são a base da teologia católica.

Outro exemplo: a influência animista e espiritualista no nordestino e no brasileiro em geral é acentuada. O nordestino simples do interior tem forte tendência a interpretar certos sinais e acontecimentos como de bom e/ou de mau agouro. A tecnologia e a modernização vão sufocando essa tendência.

Penso que ela é uma herança de sentimentos atávicos das três raças iniciais que nos formaram. A crença na Providência Divina ainda é muito forte. Segundo o estudioso do comportamento religioso, André Godin, “a Providência é julgada como uma reação animista, atribuindo intenções (sejam punitivas, sejam protetoras ou benevolentes) a certos eventos inexplicáveis ou fortuitos”. 

E, se a religiosidade é a busca pelo contato com o Sagrado, o sincretismo, de algum modo, é a forma como muita gente estabelece sua conexão com a transcendência. Por essa razão, ele não deve ser entendido como algo a ser combatido, sua constituição faz parte da nossa cultura popular. 

Cultura popular x religiosidade no Brasil

A grande dificuldade ao se retratar esse tema é definir com precisão o que é “popular” quando se fala de sincretismo religioso. Até porquê o termo “popular” não é unívoco, mas tem vários sentidos possíveis, a ponto de em termos de música, por exemplo, se poder falar até em música popular erudita.

O popular aproximadamente está relacionado com: rural x urbano; pobre x rico; pouco culto x erudito; secular x sagrado e, mais especificamente, o fiel na sua relação com Deus x a sua relação com a estrutura oficial de uma doutrina, por exemplo.

É uma questão que não é simples. E nenhuma dessas relações é absoluta na determinação de catolicismo popular que formou parte de nossa cultura brasileira – nem mesmo o fato de ele ser diferente do oficial, do proposto pela classe dirigente. O cristianismo, por exemplo, foi desde o seu início uma religião urbana.

Embora Jesus Cristo, na sua missão, tenha percorrido aldeias e povoados de preferência a cidades, os apóstolos se reuniram em Jerusalém e a partir daí o cristianismo se propagou sobretudo pelas cidades: Jerusalém, Éfeso, Tessalônica, Corinto, Roma… isso não como deliberação e exclusividade, mas pela facilidade de comunicação.

Por exemplo, o termo designativo de “não cristão” vem do latim “paganus”, isto é, “pagão”, literalmente aquele que permanece no “pagus”, na aldeia; região onde estava o povo pouco instruído e pouco catequizado, tendente a conservar costumes arcaicos, atávicos… O grande problema é que a realidade do catolicismo popular não se limita ao rural, ao pouco culto; no secular, ele é isso e mais aquilo.

Motivos que contribuíram com o sincretismo brasileiro

São muitas as pessoas cultas, com filhos formados, que mantêm por tradição e motivos diversos suas devoções populares e ritos sincréticos. Isso ocorreu porquê, na formação religiosa do Brasil, o povo do interior foi evangelizado principalmente por leigos, sobretudo pelos chamados “beatos”, que apesar de sua enorme boa-vontade e espiritualidade tinham pouca preparação intelectual e teológica. 

Os padres missionários, por sua vez, por serem poucos para a imensidão do território e pela dificuldade de deslocamento, iam ao interior uma vez por ano, para dar ao povo a oportunidade de cumprir a obrigação anual de confissão e comunhão; daí veio a expressão: “fazer desobriga”, referente à visita anual do padre a uma comunidade. Tais fatores colaboraram para que o povo elaborasse sua prática religiosa a partir do conteúdo inicialmente recebido e sofrendo as influências das religiões indígenas e africanas.

Além do mais, o catolicismo popular, com seus ritos e devoções no mais das vezes oriundos das devoções e informações antigas, foi transmitido por via oral de geração em geração, com algumas modificações ou adaptações através dos tempos. Nessa religiosidade e em seus ritos sempre aparecem elementos das religiões africanas e indígenas que escaparam da “extinção” a que foram submetidas pelo rolo compressor do catolicismo oficial.

Uma terra com acento religioso desde o início

O Brasil, a Terra de Santa Cruz, foi desde o início marcado pelo sagrado oficial. O grande inimigo dessa Terra era o ateu, o ímpio, o pagão. Segundo Gilberto Freire, havia em cada porto um capelão de plantão para visitar os navios chegados e examinar a fé de cada adventício. Os ateus e pagãos não podiam desembarcar. Os africanos aqui chegados, se não tivessem sido batizados na África ou na travessia, seriam batizados ali mesmo, antes de desembarcar, com a obrigação de se converterem ao catolicismo. E claro que essa conversão instantânea não acontecia; no máximo, os africanos fizeram uma simulação justapondo os conceitos católicos aos que já tinham na sua religião de origem. 

E tem mais: o ensino da religião foi frequentemente acompanhado da ameaça do castigo do terrível fogo do inferno, com seus horríveis diabos para punir com o tridente os que ousassem desobedecer aos mandamentos de Deus e da Igreja. Essa imagem era tão forte que se criou a expressão popular: “Feio que nem o diabo do catecismo”. O catolicismo colonial aqui difundido trouxe consigo a “verdade acabada”, como se ele não tivesse  nem pudesse vir a ter limitações passíveis de correções e atualizações. A imutabilidade em matéria de religião marcou profundamente o povo simples e foi a causa maior da resistência deste às inovações propostas pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, a partir de 1965.

Importância de se evitar preconceitos

O catolicismo popular, inegavelmente, possui elementos sociais, folclóricos e mesmo políticos, mas nenhum destes é superior à fé, que supera as limitações teológicas. Podemos admitir nas representações religiosas populares um certo esvaziamento do seu conteúdo religioso, pela persistência de rezas e ritos fora do contexto da atual modernidade, mas não podemos considerá-lo destituído de valores religiosos. Há alguns antropólogos e sociólogos que não concordam com essa visão e preferem ou tendem a reduzir a expressão religiosa popular a fatores econômicos e socioculturais exclusivamente. Não desconhecemos sua existência e sua participação no conteúdo religioso popular; reduzi-lo totalmente a essa dimensão é um pouco exagerado.

Qualquer dos elementos culturais citados é sempre secundário, se considerarmos a fé, a esperança, a caridade que devem ser percebidos ao se analisar a cultura relgiosa brasileira. Afinal de contas, a crença e a prática religiosa, seja do homem simples do interior ou do “moderno” da cidade, são expressões de uma identidade importante e que deve ser observada em sua pluralidade e contexto.

E nessa circunstância, sabendo que somos parte de muitos povos, de muitas crenças, de uma infinidade de talentos e narrativas, discutir religião é pertinente e eleva! O que se deve evitar ao máximo no campo religioso é a exclusão do diferente, o olhar de julgamento, o aceno pejorativo. Todo tipo de preconceito oriundo de uma visão fragmentada de uma religião, causada por seguidores de outra, demonstra a precariedade da fé e da cultura de quem a pratica. Até porquê, em meio a tanta riqueza e possibilidades de conexão, limitar o Sagrado ao modo como o percebemos seria conceber uma imagem de um Deus criado à nossa imagem e semelhança, e não o contrário. Já basta de exclusão! Vamos dialogar?

Trataremos mais desta temática em novas postagens, especialmente sobre religiosidades de matrizes indígenas e africanas. Gostou deste artigo? Compartilhe-o em suas redes sociais, para que mais pessoas possam conhecer nosso blog.

Ana Beatriz Dias Pinto, é comentarista convidada do blog e nos traz reflexões sobre temas atuais e contextualizados sob a ótica do universo religioso, de maneira gratuíta e sem vínculo empregatício, oportunizando seu saber e experiência no tema de Teologia e Sociedade para alargar nossa compreensão do Sagrado e suas interseções.