Transformar em palavras a experiência de ser e estar no mundo com uma condição corporal e social tão complexa – entre o ver e o não ver – sempre é um desafio. Ainda mais para quem misturou (e mistura), por meio dessa experiência, vida pessoal, carreira profissional, pesquisas acadêmicas e ativismo político.

Essa mistura, aliás, não é rara no segmento das pessoas com deficiência, porém, no meu caso, é bom esclarecer, não foi uma escolha planejada. Pelo contrário, foi um processo espontâneo, uma mistura que começou a ser construída há mais de 20 anos a partir da combinação de três elementos: o contato que tive com outras pessoas com deficiência, principalmente em instituições de reabilitação; a opção que fiz pelo curso de Sociologia e Política, em 1998; e a minha estrutura familiar.

Assim, costumo brincar que a baixa visão, centro dessa mistura em permanente construção, sem eu perceber, me “salvou” e que, atualmente, eu não conseguiria imaginar o que seria da minha vida se eu enxergasse bem. Mais ainda, costumo dizer que, sem dúvidas, a deficiência visual me proporcionou, nos últimos anos, e me proporciona no cotidiano, muito mais ganhos do que perdas, muito mais experiências positivas do que negativas.

Então, vamos em frente, mergulhar em lembranças e reflexões que traduzem um pouco de tudo isso junto e misturado…

Os três elementos da mistura

Desde pequeno até a vida adulta eu tive uma miopia alta e pelo menos uma vez por ano visitava o oftalmologista para avaliar os graus e, quando necessário, trocar de óculos ou de lentes de contato. Em 1996, durante uma dessas consultas de rotina, surgiu uma desconfiança do médico em relação às minhas retinas e, logo em seguida, veio a confirmação com exames do diagnóstico de retinose pigmentar.

Hoje, contudo, quando retorno ao passado, lembro de fatos anteriores a esse diagnóstico nos quais a baixa visão já fazia parte da minha adolescência e de eu escondê-la, por falta de informação, vergonha ou imaturidade. Lembro, por exemplo, de inventar desculpas na escola por não enxergar a lousa ou a lista de presença com medo dos meus colegas descobrirem minha dificuldade ou, ainda, de ficar mais “quietinho” e isolado nas primeiras festinhas e passeios.

Depois do diagnóstico, além da vergonha, outros sentimentos e atitudes foram muito presentes nessa época, como a negação, a busca pela cura, a esperança que não queria morrer, a insegurança e a superproteção. Isso tudo de maneira determinante até 2000, 2001, quando, já na faculdade, eu tive os primeiros contatos com a Fundação Dorina Nowill para Cegos e a Laramara (instituições de reabilitação localizadas em São Paulo) e conheci uma turma em um curso de informática para pessoas com deficiência visual, em um órgão público da capital paulista.

Não que esses sentimentos e atitudes tivessem desaparecido totalmente após esse primeiro contato com essas instituições de reabilitação e, sobretudo, com outras pessoas com deficiência visual. Porém, esse primeiro divisor de águas, também não raro na vida de muitas pessoas com deficiência, foi fundamental para eu começar a compreender o que estava sentindo, o que estava acontecendo com meu corpo, bem como para eu conhecer outros caminhos que poderiam me levar a diferentes sentimentos e a novas atitudes acerca da minha baixa visão.

É cena nítida na minha memória o entusiasmo que senti quando sentei a primeira vez em frente de um computador com leitor de telas no curso já citado ou o alívio que senti quando li pela primeira vez um texto com uma lupa eletrônica na Fundação Dorina Nowill para Cegos. Também, lembro perfeitamente o meu espanto quando um colega do curso de informática se despediu e subiu no ônibus, após reconhecê-lo pelo barulho do motor, e a minha surpresa ao presenciar colegas da Laramara tocando violão, jogando dominó ou xadrez com desenvoltura e habilidade.

Em outras palavras, foram esses primeiros contatos com equipamentos de tecnologia assistiva e, ao mesmo tempo, com as variadas e ricas realidades e maneiras de ser e estar no mundo com deficiência visual que me possibilitaram iniciar uma compreensão de que o “problema” não era somente meu e que muito menos esse “problema” estava em mim. Contatos essenciais para a minha aceitação e para o meu rompimento com a ideia de “tragédia pessoal” – crítica desenvolvida pelos teóricos do “modelo social da deficiência” que eu só iria conhecer alguns anos depois.

Dessa forma, não posso deixar de registrar dois agradecimentos especiais: um para a Drª. Clélia Erwenne, a única oftalmologista que, logo após o diagnóstico, focou no ser humano e não na doença, mostrando caminhos para a independência e a autonomia; e outro para a Eliana Cunha, profissional da Fundação Dorina Nowill para Cegos, que com carinho e respeito me acolheu (e acolheu minha mãe), me aproximando ainda mais desses caminhos e se tornando uma grande amiga.

Também, antes de entrar em outro elemento da mistura – a vida universitária –, não posso deixar de registrar o contato que tive nessas instituições com a bengala, símbolo carregado de significados negativos, instrumento que traz inúmeros conflitos para as pessoas com deficiência visual, em particular para as pessoas com baixa visão. Afinal, com o uso da bengala, imediatamente eu descobri, por um lado, o valor da autonomia e, por outro lado, ganhei visibilidade e passei a experimentar no dia a dia o preconceito.

Lembro, rindo agora sozinho, de algumas situações logo nas primeiras aulas de Orientação e Mobilidade na Laramara. Uma delas foi um beijo que dei em um cavalo (que puxava uma carroça com material para reciclagem) quando fui atravessar uma rua. Outra foi o reconhecimento de ambiente que fiz em um Shopping Center, proposto pela professora que, na verdade, queria saber se eu teria vergonha de circular pelo espaço com a bengala.

No entanto, foram outros dois momentos os mais marcantes nessa época de contato inicial com a bengala, um social e um familiar, ambos difíceis e decisivos. O primeiro ocorreu na noite em que eu e meus amigos saímos justamente para comemorar o uso da bengala quando, ao atravessar uma rua, um motorista me xingou e disse que “lugar de cego era em casa”. O segundo ocorreu no Natal de 2001, quando entrei na casa da minha tia de bengala na mão e a ceia se transformou em um velório.

Enfim, esses foram momentos nos quais eu percebi de forma mais consciente que eu não era o único a lidar com os conflitos trazidos pela baixa visão, presentes também entre meus familiares. Foram dois momentos que mostraram as diversas faces do preconceito (pena, rejeição, agressão, vergonha, negação) que começava a aparecer de maneira mais efetiva, dentro e fora do ambiente familiar.

O segundo elemento fundamental da mistura citada acima foi a escolha pelo curso de Sociologia e Política, onde, entre 2001 e 2002, no momento de escolher o tema para o Trabalho de Conclusão de Curso, eu percebi que a deficiência poderia ser um objeto sociológico, antropológico e político de pesquisa. Lembro, inclusive, que nesse processo de definição da pesquisa surgiu uma primeira “reflexão sociológica” sobre a deficiência, pelo fato de muitas vezes eu ter sido visto, na faculdade, como “exemplo de superação” por alguns colegas e professores e, em muitas situações, como alguém que supostamente tinha muito mais dificuldades para estudar do que alunos que realmente as tinham por condições sociais e econômicas.

Posso dizer, assim, que o interesse pelo tema, enquanto um estudante de Ciências Sociais, surgiu ao mesmo tempo em que eu me reconhecia enquanto um sujeito com deficiência, pertencente a um grupo heterogêneo que eu estava conhecendo cada vez mais nas instituições de reabilitação que frequentava (vivenciando, inclusive, questionamentos constantes em relação às políticas institucionais estimulados pelos estudos acadêmicos). Surgia, então, ao lado do conflito da experiência pessoal, entre o ver e o não ver, um outro conflito que me acompanha desde aquela época, o entre militar e pesquisar.

Isso porque, naquele momento, os professores me alertaram para o distanciamento que eu deveria manter na minha pesquisa, fato que reforçava a invisibilidade que o tema tinha nas Ciências Sociais (não recebi nenhuma referência sobre os Disability Studies) e, mais do que isso, uma recusa do engajamento político-acadêmico que me incomodava profundamente. Somente em 2007, quando li o livro “O que é deficiência?”, da antropóloga Débora Diniz, tive contato com essa área de estudos desenvolvida no Reino Unido, e, mais especificamente, com a sua ferramenta principal, o já citado “modelo social da deficiência” (e seus desdobramentos), que questiona a supremacia do “modelo médico da deficiência” ao politizar o tema e inserir a deficiência no debate em torno da justiça social e dos direitos humanos.

O terceiro elemento da mistura é a estrutura familiar, muito importante em todo esse percurso de reabilitação e formação acadêmica. Se por um lado, como já citei, identifico na minha família, sobretudo nos primeiros anos após o diagnóstico, os sentimentos e as atitudes que eu também sentia e tinha, por outro lado, valorizo muito minha família pelo apoio material e emocional que sempre tive para buscar minha autonomia e concluir minha faculdade com qualidade, independentemente da perda visual ter se agravado durante o curso.

Em particular, como não valorizar a minha mãe pelo carinho, pelas infinitas horas de leitura em voz alta, pelas caronas em qualquer horário, pelo esforço diário para que eu pudesse estudar e fazer a minha reabilitação com tranquilidade, enfim, pela coragem e pelo amor incondicional em todas as fases de construção dessa mistura. Foram erros e acertos, momentos de angústia e de superproteção, de estímulo e de dedicação, tudo parte de um processo permanente de desenvolvimento, reflexão e aprendizado rico para nós dois e para todos os envolvidos.

Portanto, com certeza, a maneira como eu penso e vivo a deficiência atualmente é fruto dessa mistura que continua sendo construída todos os dias. Cada contato com uma pessoa com deficiência é a descoberta de uma subjetividade relevante, é a realização da troca de experiências necessária; cada artigo ou livro lido sobre o tema é mais uma porta aberta para compreender a relação entre meu corpo e as barreiras impostas por um ambiente pouco sensível à diversidade corporal; e cada reunião com meus familiares é um encontro com o passado e com a constante ressignificação no universo familiar acerca da baixa visão.

Isso tudo somado com a oportunidade que tive e tenho de atuar com o tema profissionalmente nas três esferas (poder público, iniciativa privada e terceiro setor) e de compreender a minha condição também como uma bandeira política coletiva. Lembro com orgulho do frio na barriga que senti quando fiz sozinho, em 2007, um trajeto com três ônibus até Santo André, na região metropolitana de São Paulo, para iniciar em um projeto de rádio sobre inclusão, meu primeiro emprego na área.

As experiências positivas e negativas, os ganhos e as perdas

O senso comum costuma considerar a deficiência como perda, como algo que falta em uma pessoa. Mais ainda, com base em um padrão de normalidade, que na verdade não existe, o senso comum valoriza muito essa perda, essa falta, e ignora as diversas maneiras de ser e estar no mundo e as múltiplas possibilidades de conhecê-lo e de experimentá-lo com toda a potência que o nosso corpo possui.

Dessa forma, ao contrário do que muitas pessoas imaginam, a baixa visão pode trazer experiências positivas e ganhos surpreendentes. No meu caso, pelo menos, trouxe e traz, a cada dia, muitos ganhos e maravilhosas experiências, o que procuro aproveitar com intensidade e valorizar sempre.

Vou começar por uma experiência que pode parecer boba por ser comum na vida de quem não enxerga, mas que foi uma das primeiras de que tomei consciência ao vivenciá-la com prazer: é o fato de conhecer e conversar com pessoas sem enxergá-las, sem ter ideia de como elas são fisicamente, ou seja, de ultrapassar a barreira da aparência. Isso acontece em várias situações e quase sempre é maravilhoso – inclusive, tenho amigos e amigas que até hoje eu não sei bem como são fisicamente e isso, de maneira nenhuma, me incomoda.

E por falar em amigos e amigas, lembro de uma experiência negativa que tive, também comum na vida de quem tem baixa visão, e do apoio inesperado que recebi na época em que ela ocorreu de pessoas queridas que até hoje fazem parte da “família”, tão importante em todos os momentos relatados aqui. Essa experiência negativa ocorreu em 2005, no entorno da faculdade, quando mais uma vez me agrediram verbalmente e me ameaçaram de agressão física por acharem que eu estava fingindo ser “cego”.

Imediatamente, a direção da faculdade ofereceu apoio material e a estrutura para a realização de um evento sobre baixa visão, o que acabou envolvendo o Centro Acadêmico. A turma toda entrou em ação e com panfletos impressos pela faculdade, divulgamos a atividade pelo bairro, entramos em contato com instituições, conseguimos espaço na rádio CBN e preparamos materiais em áudio e braille.

A palestra da já mencionada amiga Eliana Cunha foi realizada na manhã de um sábado, antes da Festa Junina da faculdade, na qual foi arrecadado dinheiro para a compra de uma lupa eletrônica para a biblioteca. Foi lindo! De um limão fizemos uma limonada deliciosa, o que me mostrou, naquele momento, que a minha causa poderia ser também a causa de amigos e amigas sem deficiência e da comunidade local.

Já em relação aos ganhos que a baixa visão me trouxe e me traz, quero destacar o trabalho como audiodescritor consultor, atividade profissional executada exclusivamente por pessoas com deficiência visual, que realizo com parceiros incríveis. Se conhecer e interagir com pessoas sem enxergá-las é prazeroso, igualmente ou mais prazeroso é colaborar para tornar acessíveis ao público com deficiência visual filmes, programas de televisão, peças de teatro, obras de arte, fotografias, livros e espetáculos musicais, por meio da tradução intersemiótica dos conteúdos visuais em conteúdos verbais, processo essencial para a fruição estética e artística.

Entretanto, quero aqui frisar que realizo essa atividade profissional há pouco tempo, visto que a minha aproximação com a audiodescrição ocorreu com muitos conflitos, questionamentos e, até mesmo, preconceitos da minha parte, motivados pelo pouco conhecimento, pelo não uso desse recurso de acessibilidade (pela falta de experiência minha como público-alvo) e pelas informações incompletas e tendenciosas que eu recebia. Felizmente, tanto a possibilidade de utilizar a audiodescrição e a aproximação com profissionais generosos e competentes – como Lívia Motta, Mimi Aragón e Felipe Monteiro – quanto o estudo informal e a oportunidade de fazer uma especialização na área em 2017-2018 na Universidade Estadual do Ceará me trouxeram muitas reflexões e experiências positivas e me fizeram um audiodescritor consultor.

Outro ganho, com certeza, é a minha relação profunda com o samba, o choro e a bossa nova – com a música popular brasileira em geral –que, sem dúvidas, tem a ver com o fato de eu não enxergar bem. Isso porque eu fiquei, na fase do luto e da vergonha, alguns anos sem conseguir ler (sempre gostei de ler muito desde criança), o que intensificou a minha aproximação com a música, atualmente uma válvula de escape, um combustível, um alimento que consumo todos os dias da minha vida, com um prazer que não conseguiria traduzir em palavras.

Em especial, lembro com detalhes de uma cena “embaçada” pela baixa visão e que exemplifica bem essa paixão. Em 2001, foram lançados os quatro discos do Tom Zé dos anos 70 em CD e eu, meses antes de começar a usar bengala, enfrentei alguns quarteirões entre carros, postes e outros obstáculos para comprá-los e, depois, passar a noite inteira colado no aparelho de som, maravilhado com o experimentalismo do gênio de Irará.

E as perdas, quais são? Sim, existem perdas, é óbvio, até porque mesmo em contextos sem barreiras, continuo sem enxergar bem, impedido de fazer algumas atividades de que eu gostaria. Posso citar, por exemplo, a falta que sinto de jogar bola ou de assistir a uma partida de futebol no estádio; ou, ainda, a vontade que às vezes sinto de pegar um carro e percorrer longas estradas até uma cidade desconhecida, um país vizinho para conhecer pessoas, músicas, comidas e tudo mais.

Por isso, procuro justamente viver intensamente as experiências positivas e os ganhos, pois se eu sou um privilegiado por ter tido condições familiares, sociais e econômicas para chegar até aqui, posso dizer que também sou um privilegiado por ser e estar no mundo nessa condição, por experimentá-lo de uma maneira legítima, não convencional, e que, com certeza, ainda me trará surpresas boas e ruins, conquistas e derrotas.