Especialista ressalta que não existe o “aceitar-se naturalmente”, porque as pessoas não têm um natural, estão baseadas em conceitos de identidade que ancoram o psicológico a partir do reconhecimento pelo mundo externo.

Segundo pesquisa realizada pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP (Faculdade de Medicina da USP) com três mil mulheres, 40,5% afirmaram ter sintomas de depressão, 34,9% sofrem de transtorno de ansiedade e 37,7% de estresse. E, em meio a tantos desgastes provocados pela pandemia no último ano, o despertar para o autocuidado se destaca entre as necessidades de mudança comportamental entre as mulheres, na visão da psicóloga Alethéa Vollmer, que atua há mais de 20 anos com atendimento clínico.

Para a especialista, um exemplo disso é a transição capilar, uma prática libertadora que foi intensificada no período de isolamento social e vem sendo frequentemente adotada por mulheres do mundo todo. “A mulher nunca chega no ponto de se aceitar como é naturalmente, porque as pessoas não têm um naturalmente. As mulheres, em especial, estão baseadas em um conceito de identidade que ancora o psicológico a partir do reconhecimento pelo mundo externo”, explica a psicóloga.  

A avalanche de imagens nas redes sociais de muitas famosas mostrando seus cabelos sendo transformados por falta de procedimentos de beleza, revelou a possibilidade de autocuidado a ponto de inspirar o universo feminino a aceitar-se com as madeixas brancas, os cachos e os estilos próprios que cada um passou a ter.

“Se elas podem, eu também posso. O Eu verdadeiro, a despeito de colocado na sua essência, sempre precisará do olhar do outro para dizer que ele pode existir. É uma questão de constituição. Eu me constituo a partir deste discurso e as pessoas me olham e veem desta forma. Não adianta eu dizer que meu cabelo é lindo e o outro dizer que não. Acabo criando uma dissociação em mim e o discurso do outro tem um peso tão grande que, ou eu me escondo, ou eu começo a brigar com o outro pela aceitação”, explica a psicóloga Alethéa.

E quando as pessoas conseguem se olhar no espelho e se enxergarem da forma que estão, a gostarem deste “novo” cabelo, por exemplo, elas passam a se aprovarem para si mesmas e para o mundo. “Elas relaxam um pouco mais. Conseguem distinguir que o outro tem um cabelo diferente, mas não melhor ou pior, aprendem a lidar com diversidade. Até parece bobagem, mas a ‘simples’ aceitação por um cabelo é capaz de interferir em escolhas de vida importantes, como profissões, parcerias sexuais e a forma como existir no mundo”, analisa a psicóloga.

Alethéa lembra que durante muito tempo o cabelo crespo, sobretudo o negro, era um cabelo chamado de ‘cabelo duro’, que não tinha reconhecimento nenhum, não era aceito. Então, a única forma que se podia era não ter este cabelo. E aí vem um movimento, sobretudo político, que diz: mulheres, sejam protagonistas e se aceitem. Neste contexto, o termo de transição capilar é muito feliz pelo seu significado, porque se trata da mudança que acontece aos poucos. “Eu vou começar a me constituir de outra forma e a sociedade vai me autorizando a isso. Por exemplo, antigamente não existia um produto específico para cabelo crespo. Hoje, são diversas as opções apresentadas pela indústria, porque ela abraçou este discurso e está dizendo para essa mulher que ela pode ter esse cabelo. Então, existe o reconhecimento. Não tem esse natural, é uma produção que se naturaliza”, explica a psicóloga.

Esse reconhecimento pelo mundo causa completa mudança, porque à medida que a mulher se aceita, a sua autoestima melhora, ela passa a se sentir prestigiada pelo outro. O ser humano está constantemente em busca deste sentimento, que vem de um processo muito lento. “Por muitos anos esse cabelo crespo que hoje é aceito e cobiçado, foi tiranizado”, complementa Alethéa.