Na maior parte de sua existência a humanidade viveu praticamente apenas na realidade mágica. Desde o surgimento de alguma consciência nossos ancestrais quedaram apavorados, maravilhados, perante um universo infinitamente maior que eles e sua capacidade de entendimento: fenômenos naturais como tempestades, terremotos, raios e vulcões; escassez e fartura de caça e vegetais para coleta; doenças e ataques de animais e insetos. Animais sem capacidade de raciocínio e com memória meramente instintiva vivem esses fatos como se apresentam, buscam a segurança e o alimento e fogem do perigo. Os primeiros “pensantes” devem ter estabelecido alguma correlação entre consequências e causas, e atribuíram-nas a algo que os transcendia, na busca de ter algum controle sobre isso entenderam que era necessário aplacar as divindade anímicas controladoras do bem e do mal. O aplacamento exigia conhecimento, daí o início das mitologias, simples a princípio e chegando à sofisticação dos hindus, egípcios e gregos; judaísmo, cristianismo e islamismo em seguida.
A ideia da magia, do sobrenatural e do maravilhoso está imbricada em nossa civilização e nossa cultura, afinal até o século XVIII e o Iluminismo as maiores universidades do mundo dedicavam o melhor de seus esforços à Teologia e suas vertentes. Não foram casos isolados o julgamento de Galileu Galilei e o assassinato de Giovanni Bruno pelas inquisições.
Na cultura brasileira há muitas histórias, tanto no ambiente urbano quanto rural, que relatam detalhadamente experiências sobrenaturais, muitas delas antigas, contadas por avós a seus netos, em reuniões de adolescentes, à beira das fogueiras de bandeirantes e escoteiros, em noites de pouca lua, que assombram e arrepiam. Nessas histórias o protagonismo dos que já morreram é um fato, sempre conferimos aos nossos mortos o papel de intermediários com o sagrado, capazes de nos proteger e enviar mensagens, e aos mortos alheios a capacidade de nos assombrar, de nos torturar, de nos levar com eles; abaixo dos santos e acima dos vivos ficavam os espíritos dos mortos, governando e vigiando o mais possível os viventes, para o bem ou para o mal.
O culto aos mortos remonta aos antigos gregos e romanos, e desde então mantemos acesa a crença nos médiuns, nos presságios, premonições, nas almas penadas que vagam pelas ruas de nossas cidades a pedir oferendas, cobrar malfeitos que sofreram, cumprir seus destinos interrompidos.
O culto aos mortos é um procedimento ainda mais antigo, embora pouco registrado: aparentemente estavam associados aos cultos agrários e da fertilidade, talvez por uma relação observada ao longo de séculos entre a semeadura e o sepultamento, capazes de gerar uma nova vida. Estes costumes estão ainda preservados no Peru, com famílias trazendo comida e bebida aos túmulos de familiares, ou no México, onde se festeja o Dia dos Mortos com música, foguetes, caveirinhas de açúcar e imensas procissões para honrar entes queridos.
Embora temamos a morte, o contato com “os que já foram” tem sido objeto de alguns dos mais belos trechos de nossa literatura, povoa nossos “causos” e ditos populares, louvando aqueles que foram para o outro lado:
Alma minha gentil que te partiste
Tão cedo desta vida descontente
Repousa lá no céu eternamente
E viva eu cá na Terra sempre triste
(…) (…) Roga a Deus que teus anos encurtou
Que tão cedo de cá me leve a ver-te
Quão tão cedo de meus olhos te levou.
Afinal, a totalidade do que existe, mesmo considerando o que já existiu e ainda existirá, é infinitamente pequena comparada com a totalidade dos objetos de conhecimento, que embora inexistentes do ponto de vista concreto, podem receber descrições e discursos relevantes e bem construídos; bons exemplos disso são as descrições do universo de Harry Potter, os contos sobre a fonte da juventude e muitas outros.
Toda ficção envolve objetos apenas imaginados, como mitos, grandes heróis, contos de fada. Em “Através do espelho e o que Alice encontrou lá”, o autor Lewis Carroll, que além de contista lecionou matemática em Oxford, fala sobre o impossível: – “Ninguém pode acreditar em coisas impossíveis [disse Alice]. – Eu diria que você nunca praticou o bastante [disse a Rainha]. – Quando eu tinha a sua idade sempre praticava meia hora por dia. Às vezes me acontecia acreditar em seis coisas impossíveis antes do café da manhã”. Ou seja, para ele, acreditar no sobrenatural era apenas questão de decisão.
Escolas de todos os níveis transmitem o saber relacionado ao que consideramos “fora da natureza”, e estes constituem também nosso legado cultural.
De todo modo é prudente não esquecer a frase atribuida ao genial Miguel de Cervantes “Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay”.
Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.