Um ano depois de inaugurar a primeira TV negra no País, o cantor e apresentador Netinho de Paula enfrenta dificuldades operacionais e diz que sua emissora sofre com o que chama de ‘racismo’ das empresas de TV a cabo. Apesar disso, recentemente ele inaugurou uma retransmissora de sua TV da Gente na Bahia. Nesta entrevista, Netinho revela estar preparando uma ofensiva contra NET e TVA, que controlam os serviços de TV paga no Brasil. “O negro precisa ter acesso ao dinheiro. O resto é balela”, sentencia.

Um ano depois de inaugurar a TV da Gente, você acredita que o negro precisava mesmo de uma emissora de TV para negros?

Tudo o que nós temos em termos de televisão é o que nos dão, não o que fazemos. Nunca nós realizamos, é sempre alguém que realiza e nos convida para que participemos um pouco, muito pouco. Quando teve a “Turma do Gueto” (Record), quando apareceram os personagens Laranjinha e Acerola na Globo, agora o seriado “Antônia”, a gente tem a sensação de que o problema está resolvido. O que existe de fato é que a televisão brasileira ficou atenta a um tipo de telespectador que quer conhecer um pouco mais da periferia.

Negros querem mesmo ver mais negros na televisão?

Netinho – Ele não quer ver só o negro, mas quer ver o negro em situações reais. Ele não consegue se ver, está sempre estereotipado. Quando acontece de a gente se ver, como na série “Antônia” ou em “Cidade dos Homens”, as pessoas se identificam. Essa realidade é o que a gente precisa ver, e, mais do que isso, a gente precisa ver famílias de negros, crianças negras. Que criança negra se destacou recentemente na TV?

Uma emissora para negros não pode privar os próprios negros de uma programação que ela não exibe por considerar ‘branca’?

 O que tentamos fazer na TV da Gente foi ter pessoas negras com destaque aparecendo ao lado de brancos com destaque. Isso não é comum. É importante ressaltar que tudo o que se faz para o negro no Brasil vem da visão do branco. Por que a TV da Gente não pode mostrar a visão dos negros de diversidade racial? A gente tem a nossa oportunidade de mostrar. Os diretores artísticos de todas as emissoras, os presidentes de todas as emissoras, as pessoas que contratam e que mandam, todas são brancas. É quando eles querem, do jeito que eles querem e na hora em que eles querem. Ok, agora temos o Lázaro Ramos e a Thais Araújo como protagonistas de uma novela. Ok, essa novela vai acabar e vai entrar uma outra. Cadê? Tem alguma outra protagonista negra? Essa é nossa pergunta.

E aí entraria sua emissora?

Netinho – Minha emissora é uma TV dirigida por negros, mas que mostra o que é a diversidade racial na visão do negro. Eu seria muito burro se fizesse uma televisão só para negros. A questão racial na periferia é bem resolvida, só sentimos os problemas do racismo quando saímos dali, quando saímos do Capão Redondo e vamos para o centro procurar emprego. A televisão passa por isso porque é o poder. Então entendo porque não querem que a gente cresça. A NET (empresa de TV a cabo) enrolou e a gente não entrou na grade deles, mas a Mix entrou, e todos os outros canais, como Shop Tour, que é recente também, entraram. Nós não podemos entrar.

Sua TV está sofrendo preconceito, é isso?

Netinho – A sensação que tenho é de que tudo o que a gente fez em termos de qualidade e produção, de investimento, foi simplesmente desprezado pela NET e pela família Civita (dona da TVA). Por que não teríamos um espaço na grade de programação dessas empresas? A conversa com eles sempre foi meio senzala mesmo. Tapa nas costas, “que bonitinho”, “a gente volta a conversar”, “espera a digitalização”. E com esse tapa nas costas que deram e a não abertura, ficou muito claro que eles não querem que o dinheiro circule nas mãos dos negros. Ter um canal da TVA ou na NET significa visibilidade, visibilidade significa anunciantes. Eles negarem isso pra gente trouxe um prejuízo imenso ao projeto, que fiz acreditando que não haveria discriminação. Senti de fato que eles foram extremamente preconceituosos. Não sei quantos canais este ano a NET colocou em seu line up, mas sei que a TV da Gente merecia estar. Por que o Canal 21 está na NET agora? Por que o 16, que o filho do Lula está junto, está na NET? Por que o nosso não?

A hora do tapa nas costas já passou, faz um ano que estamos tomando tapa nas costas. Vamos divulgar que essas empresas são claramente racistas.

Pode ser que a TV da Gente não seja economicamente viável.

Netinho – Impossível, eles precisam é de programação. Que programa que a TV do filho do Lula tem que a gente não tem? A gente produz mais do que a TV do filho do Lula, a TV do filho do Lula é um shopping que vende coisas o tempo todo. Eu não sei se eles pagam para a NET para terem o canal, e se a questão é essa, se eu tiver de pagar para a NET pra ela liberar uma freqüência para a gente, quanto é que custa? Não é um favor que queremos. Existe de fato uma má vontade, e eu acredito sim em discriminação.

Supondo que realmente estejam barrando a entrada da TV da Gente na TV a cabo, por que fariam isso? Do que teriam medo?

Netinho – Eu acredito muito em uma questão de luta de classes. Aí vamos retomar o discurso usado até pelo presidente. Produção de programa, televisão, sempre foi algo muito elitizado no País. Isso sempre foi muito branco no Brasil. Por que agora esses negros querem entrar até nisso? Até nisso eles querem entrar?

Muitas vezes a bandeira do preconceito acaba sendo usada por algumas lideranças negras de forma política e oportunista. O quanto há de preconceito real e o quanto há de preconceito produzido pelos próprios negros no Brasil?

Netinho – Eu costumo jogar com a realidade. Quando vejo a questão financeira excluir uma determinada cor no Brasil, tudo cai por terra. Quando você olha na redação do seu jornal e vê que de cem pessoas trabalhando há cinco negros, tem coisa errada Se você olha em um banco e vê cinco gerentes brancos e um faxineiro negro, tem coisa errada. Não vamos perder tempo com aquele discurso do ‘ah, o branco me entregou a chave dele pensando que eu era manobrista’, ou ‘não deixou eu comprar algo porque sou negro’, esse tipo de lamentação já acabou. A questão agora é o dinheiro. O negro precisa aprender a ter acesso ao dinheiro, o resto é balela. Existe o negro coitado, o que se finge de pobrezinho, o que vive lamentando, isso não ajuda a gente em nada.

Cotas não podem complicar ainda mais a questão da discriminação?

Netinho – As cotas são um mal necessário. Antes eu achava que deveríamos mostrar nossa qualidade, mostrar que a gente também sabe produzir. Então eles (executivos das redes de TV a cabo) foram até nossa TV, conheceram, gostaram, deram tapinhas nas costas, e não aconteceu absolutamente nada. Então está muito claro pra mim que falaram algo como ‘deixa esses negões aí, não mexe com esses negões não.’