O ressentimento é uma força poderosa e destrutiva, tanto para pessoas quanto povos. Foi o ressentimento pela derrota na primeira guerra mundial e decorrente crise econômica que levou o povo alemão – que deu ao mundo Goethe, Bach, Beethoven e inúmeros outros expoentes do humanismo e da cultura – a aceitar bovinamente o nazismo.
Sempre nos surpreendemos quando pessoas “que tem tudo” cometem atrocidades e assassinatos, os crimes por motivo material não nos surpreendem tanto, apenas chocam, mas é algo com propósito, terrível e abjeto mas propósito.
Recentemente lamentamos o ataque cometido por um refugiado sírio contra crianças e idosos na França, sem propósito nenhum além da violência; poderia ser considerado com alguma ingenuidade um pedido de socorro de alguém não reconhecido como ser humano, poderia ser debitado a problemas mentais graves, poderia ser muita coisa mas foi o que foi: uma barbaridade covarde perpetrada contra pessoas frágeis e indefesas.
O criminoso era refugiado legal na Suécia, com todas as vantagens que países civilizados e ricos proporcionam aos que acolhem nesse status, menos talvez a vantagem que mais fazia falta, ser um cidadão pleno não distinguível dos demais. Por cruel que seja, o repertório cultural é parte de todos nós, não perdemos sotaques, hábitos, crenças, até aparências, apenas por conviver em outra sociedade ou país, embora isso até seja possível em parte com grande esforço e tempo, mas o sentimento de não ser parte integral daquele país ou sociedade permanece e para algumas pessoas com elevado narcisismo prevalece, gerando mágoa e ressentimento, e no extremo violência contra outros. Parte da gênese de muitos crimes “sem motivo” é este narcisismo, a ideia de ser o centro de tudo e não ter sua centralidade reconhecida pelos colegas, pelos vizinhos, pelos familiares; como se não fosse necessário nenhum mérito além da própria existência para receber aclamações e incensos.
Convivemos nos últimos anos com notícias de ataques em escolas cometidos por alunos e ex-alunos, e não só em nosso país, o padrão que parece justificá-los é o sofrimento de bullying por parte de colegas e prática de “disciplina abusiva” dos professores. Embora bullyings existam e alguns professores possam mesmo ser severos na manutenção da disciplina necessária, não é o caso de matar estudantes e professores. Os perpetradores desses crimes acreditam-se injustiçados por não receberem a atenção de que se julgam merecedores ou serem admoestados por mestres e funcionários quando excedem o razoável quanto ao comportamento, e doenças psíquicas são agravadas quando somadas à facilidade atual no acesso a armas diversas.
A violência e o abuso contra crianças não é “uma narrativa” para assustar familiares e mestres, algo que tenha sido imaginado por ativistas; casos de crianças que foram fisicamente, sexualmente ou emocionalmente abusadas contam-se às centenas, no Brasil e em muitos outros países.
Trazer esse fato à atenção do público, dos pais, dos professores, dos legisladores, e das próprias vítimas, foi uma das mais valiosas contribuições da tomada de consciência que ocorreu a partir da década de 1960 do século passado, embora a violência contra crianças venha sendo perpetrada desde a antiguidade em todos os lugares do mundo, em todas as classes socioeconômicas.
Este é um fenômeno complexo, com multiplicidade tanto de causas quanto de consequências para as vítimas que permanecem vivas, pois hoje pesquisas mostram que experiências de violência ou abuso na infância correlacionam-se a perturbações psicológicas e comportamentais na vida adulta.
São mais estudadas as associações entre o abuso sexual de crianças e os distúrbios psiquiátricos como transtorno de humor, de estresse pós-traumático, e psicopatia, ou seja, os atos praticados por desajustados geram desajustes. Segundo os dados do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, “criminosos sexuais são indivíduos que podem pertencer a qualquer classe socioeconômica, raça, grupo étnico ou religião. A grande maioria não tem comportamento criminal específico. Tipicamente, seu grau de escolaridade é de ensino fundamental ou médio, está empregado e apenas 4% sofrem de doença mental severa”.
O que agrava muito esses casos é que raramente a violência contra crianças ocorre sem planejamento ou premeditação; de forma geral os perpetradores planejam horas, dias ou até meses antes da ação. Normalmente eles compreendem que agem fora da lei, mas justificam o comportamento afirmando que não estão cometendo nenhum crime e que seu comportamento é totalmente aceitável e inocente.
Autoridades falam de uma epidemia de abuso de crianças, e os crimes como os recentemente ocorridos, um no Brasil e outro na França, nos quais crianças foram atacadas com facas e muitas vieram a morrer e outras ficaram seriamente feridas, infelizmente mostram uma tendência de ataque a quem não pode se defender.
O Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil, criado pela UNICEF e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revela que o assassinato de das crianças na creche de Blumenau não constitui um caso isolado, já que entre 2016 e 2020, 35 mil crianças e adolescentes de 0 a 19 anos foram mortos de forma violenta no país – uma média de 7 mil por ano; de 2017 a 2020, cerca de cento e oitenta mil sofreram violência sexual – uma média de 45 mil por ano.
Internacionalmente os dados não mostram um cenário muito melhor, e tomando-se como exemplo o dois últimos casos citados, embora um tenha sido realizado dentro de uma escola de educação infantil e outro num parque, mostram atacadores desajustados.
Por outro lado, os órgãos de imprensa devem ter grande cuidado na divulgação de notícias ligadas aos casos de abuso e violência contra crianças; a indignação justificada pelas barbaridades cometidas pode obliterar o julgamento de quem deveria até por dever de ofício manter equilíbrio e isenção emocional. O chamado caso da “Escola Base” é um triste exemplo de irresponsabilidade de um jornal do país e de sua rede de TV, baseados apenas em boatos.
Em se tratando de crianças, principalmente em ambiente escolar, todo cuidado é pouco; não criar falsos heróis nem culpar inocentes, mas com certeza uma contenção no acesso às armas ajudaria, embora não solucione definitivamente.
Educação e cuidados com a saúde pública podem ser a melhor resposta.
Wanda Camargo – Educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.