Há alguns anos o país assistiu estarrecido a mais um caso de assassinato de mulher por seu ex namorado, no que hoje é tipificado como feminicídio. O que, infelizmente dada a frequência de crimes deste tipo, não chamaria tanta atenção não fora a vítima uma personalidade da sociedade mineira. Os advogados do criminoso alegaram uma absurda “legítima defesa da honra”, e tentaram culpar a morta, dado o seu “comportamento liberal” que teria “ferido os sentimentos” do pobre assassino.  Esta história sórdida aconteceu de fato, e não é exceção no conturbado panorama criminal brasileiro, ocorreu no milênio passado, mas ainda é quase regra no século vinte e um. 
Naquela época os movimentos feministas exerceram a pressão possível por um julgamento justo e sem vieses de gênero ou sociais. Casos deste tipo são emblemáticos, e a justiça deve ser feita com equilíbrio, não criando mártires tampouco livrando assassinos. Aos argumentos dos causídicos de que o réu deixou-se dominar por uma paixão avassaladora a resposta veio numa frase, ainda e sempre atual: “quem ama não mata”. Mas há quem diga amar, ou até acredite amar, e mate. Ama o próprio ego, ama a posse, ama o controle, certamente não ama a vítima. 
Pessoas em posição de poder – físico, financeiro, político, emocional – parecem acreditar mesmo que podem controlar a vida, as escolhas e sentimentos de parceiras e parceiros afetivos, e alguns agem de forma violenta quando contrariados nesta crença, chegando até ao extermínio do que dizem amar. 
Lamentavelmente os casos não são raros, e homens são a maioria nesta prática, devido a que ainda constituem a maioria das pessoas “poderosas” e que não admitem ser substituídos por outrem; na maior parte dos crimes ditos passionais, uma análise criteriosa levaria talvez à conclusão de que o insuportável para o criminoso não é ficar sem a pessoa “amada” e sim que esta fique com outra pessoa; casos exacerbados de patrimonialismo pessoal.
Gilberto Freyre, estudioso dos costumes brasileiros, já analisava as relações entre a organização de nossos agrupamentos domésticos, comparando-os com a forma de dominação estatal. Considerava o patriarcalismo uma estratégia da colonização portuguesa, assentado na escravidão, que contaminou e continua a prevalecer na relação entre homens e mulheres, estabelecendo o arbítrio de apenas um deles como natural e desejável.
Mantemos até hoje esta herança colonial, que estabelece o predomínio do masculino, baseado na razão e na força, sobre o feminino, associado à sensibilidade e passividade. Em muitos países o sistema político esteve mais assentado na razão dos cidadãos adultos, que recusavam os princípios absolutistas das monarquias tradicionais em prol de uma sociedade civil isenta da tutela de um monarca. O Brasil, imerso em variadas crises, não proporciona à maioria de seus cidadãos as condições que propiciariam um modelo de comportamento mais “civilizado”. A imensa luta pelo sustento próprio e de familiares contribui para brutalizar as relações pessoais e sociais, o sentimento de impotência face à vida e seus desafios cria desespero que deságua não raro em violência à menor provocação. 
Isso, claro, se reflete nas instituições escolares, onde desde cedo são repetidos tais procedimentos, pois escolas muitas vezes apenas ecoam conflitos e preconceitos comunitários, em lugar de funcionarem como verdadeiros centros de renovação. Meninos acreditam ter o direito de exercer sua vontade, mesmo utilizando violência, e muitas meninas ainda pensam também deste modo, tolerando e considerando quase inevitável que isso aconteça. Não é de estranhar que mais tarde isso possa ter consequências desastrosas.

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.